O que os saberes ancestrais ensinam às crianças?

Texto: Camila Hoshino e Carolina Pelegrin – Site Lunetas

Para Ailton Krenak, o vínculo com saberes preservados entre gerações são fundamentais para a educação das crianças e para construir mundos mais sustentáveis

Educar não é uma tarefa linear. Criado a partir da cosmovisão de seu povo, o escritor, ativista e imortal da Academia Brasileira de Letras, Ailton Krenak, defende uma educação que não se limita ao endereço da escola e se fundamenta na transmissão de saberes ancestrais, entre gerações. A ideia de que para criar outros mundos possíveis é preciso resgatar o vínculo com a memória de quem viveu muito antes de nós dá nome ao seu livro mais recente, “Futuro ancestral”.

Para ele, restabelecer essa conexão é essencial para enfrentar os desafios contemporâneos, sobretudo a busca pela preservação da natureza e por uma vida mais sustentável, que garanta o bem-estar de todos, e não apenas de uma parte da população.

Em “Futuro ancestral”, Krenak faz o leitor refletir sobre a importância de se compreender como parte de um todo, como uma fração pequena de uma história que começa muito antes de nós e se estende para além da nossa existência.

Por isso, sugere um modelo de educação que considere o quanto as águas do rio ensinaram à sua comunidade, como os tataravós desenvolveram habilidades à beira do rio e o quanto esse mesmo rio ofereceu de poesia à sua vida. Para Krenak, a educação acontece na “liberdade da criança existir”.

“O filho perguntou pro pai
Onde é que tá o meu avô?
O meu avô onde é que tá?
O pai perguntou pro avô
Onde é que tá meu bisavô?
Meu bisavô, onde é que tá?
Avô perguntou bisavô
Onde é que tá tataravô?
Tataravô onde é que tá?”
(Gilberto Gil, “Babá Alapalá”)

Educar pela ancestralidade

Estender a sala de aula para a vida cotidiana, como observa o pedagogo e professor da UERJ, Luiz Rufino, é um “exercício contínuo de uma experiência comunitária”. Assim, a noção de família também transborda para outras pessoas que participam da rotina das crianças e impulsiona o sentimento de pertencer a uma comunidade, “que tem como fundamento valores pautados na ancestralidade” afirma.

Sobre isso, Miguel, 11, tem algo a dizer. Ele foi iniciado aos cinco no candomblé, no terreiro Ilê Axé Omo Omin, em Colombo, região metropolitana de Curitiba. Do cozimento dos alimentos presenteados aos Orixás às expressões corporais que movem toques de tambor e danças durante as celebrações, há muito mais “memória” do que se pode imaginar.

Miguel foi aprendendo como pensavam “os antigos” como quem vigia enquanto brinca solto pela cozinha do terreiro. Com as histórias de Oxóssi, entendeu mais sobre amizades. Com os segredos de Ossain soube que era importante preservar a natureza, porque é de lá que vêm “as folhas para curar e fazer remédio. Natureza é vida, né?”, diz. Na figura de Oxalá, encontrou paz.

E se engana quem acha que se trata apenas de colher e macerar ervas para dor ou desamparo como faziam antigamente. Luiz Rufino defende que a ancestralidade “é uma noção de futuridade”. Que enquanto compartilhamos valores com nossos filhos, “garantimos que laços comunitários se enraízem em valores comuns”. Ou seja, é sobre o vínculo de receber e transmitir, aprendendo com mães e avós que, por sua vez, aprenderam com suas mães e avós.

Assim, “contar essas histórias para as crianças, a meu ver, é grandioso porque faz pensar a ancestralidade como o presente alargado, uma espécie de outra relação com o tempo, que não é linear”, complementa Luiz.

O poder dos provérbios ancestrais

Para Benilda Brito, professora e consultora da ONU Mulheres e do Pacto Global, ancestralidade é sobre “sobrevivência, identidade e o pensamento através do afeto. Benilda vive no Quilombo do Açude, na Serra do Cipó, em Minas Gerais, e se vale dos saberes passados por gerações para educar as crianças da comunidade. Ela conta que a educação, na cultura africana, está mais relacionada com anos de vida e experiência do que titulações: “Quanto mais velha a pessoa for, para nós, mais sábia a pessoa é.”

O que se aprende com “aqueles que vieram antes” nem sempre está escrito em livros didáticos ou livros de receitas. Porém, fica inscrito na memória e na ação cotidiana, auxiliando a construir a narrativa de vida de cada um. Dessa forma, a educação acontece no campo da identidadeNo quilombo, como conta Benilda, esses saberes estão nas canções, na preparação de chás, nos ditados populares que circulam desde muito tempo: “Quem acorda primeiro bebe água fresca.”

“Ao encontrar e reconhecer valores que nos identificam com nossos ancestrais, criamos também uma conexão com quem somos”, afirma Benilda Brito.

Luiz Rufino também defende o poder desses rituais para compartilhar valores com as crianças. Por isso, ele busca transmitir o conhecimento dos seus pais e avós – vaqueiros e lavradores, vindos do Ceará – para seus filhos e sobrinhos.

“Nós carregamos muitos valores ancestrais nessas práticas corriqueiras, na capacidade que a gente tem de ritualizar a vida. Isto é, como se come, como se brinca, como se canta, como se celebra nossos mortos, como se celebra a vida, diz.

Já a mãe de Miguel, Isabella Sacramento da Silva, 38, mestra em educação e doutoranda em antropologia, conta que a identificação dos filhos com seus Orixás ensina valores e os prepara emocionalmente para compreender o mundo. Assim, aquilo que aprendem na escola ganha reforço em casa, com a vivência religiosa. “Tudo isso ajuda a trabalhar as emoções, com uma visão de mundo voltada para o respeito, a igualdade, o coletivo e para o amor próprio, muito presente no candomblé.”

Herança do samba

Desde os quatro anos, a carioca Luna Vitória frequenta os ensaios da escola de samba Unidos do Cabuçu. Hoje, aos 14, ela entende o samba como um recurso de educação e resistência. “Eu luto pelo samba e luto pelas vidas do samba”, dispara.

É por ali que ela segue, literalmente, os passos de seus ancestrais. Luna acredita que levar adiante essa cultura é uma grande responsabilidade. Mas também uma missão, que honra os ensinamentos dos mais antigos para enfrentar problemas sociais, como o racismo. “A escola [de samba] traz para gente a história dos ancestrais, a ancestralidade. Na escola, se fala muito sobre a chegada dos africanos no Brasil”, conta a menina.

Essa educação que vem das quadras se complementa à educação formal, como defende a mãe de Luna, Karla Faria Medeiros Galdino, 58. “Se gosta de samba, tem que gostar de estudar.” Portanto, segundo a mãe, a rotina escolar é prioridade no dia a dia de Luna: “Você não vê uma musa ou uma rainha que não tenha uma profissão!”

O caminho do afeto

Contudo, no ritmo acelerado da vida urbana, é possível que as famílias se questionem como resgatar esses ensinamentos. De acordo com Benilda Brito, todo ensinamento ancestral só se faz possível pela relação de afeto presente. “É aquela coisa de deitar no colo de vó e receber certeza, afago, tranquilidade, sossego, coragem e ouvir conselhos.” Assim, colocar o afeto no lugar de protagonista na relação com os pequenos também parte de um princípio ancestral – o do cuidado.

“O afeto é a nossa cosmopercepção”, afirma Benilda. Ou seja, aquilo que os povos africanos sentem, segundo ela, a partir do lugar de maior conforto da vida, que é o útero da própria mãe. Por isso, “a gente reverencia a ancestralidade, porque reverenciamos o útero que nos pariu, lugar de maior tranquilidade e coragem para encarar os desafios do mundo”.

Também é esse cuidado que Ailton Krenak reivindica aos adultos que delegaram a função da educação apenas à escola, com auxílio das telas. Para ele, as famílias não podem “renunciar ao mínimo de vínculo afetivo constitutivo da identidade das crianças”, pelo menos durante a primeira infância.

Caso contrário, estaremos produzindo “um abismo cognitivo”, afirmou durante sua palestra no Festival LED 2024, evento que discute caminhos para a educação brasileira. Isto é, crianças que superam desafios do Minecraft, mas que são incapazes de escutar um colega ou de dizer como se sentem. “Se perdemos isso, deixaremos de lado nossa humanidade.” Nesse sentido, Krenak também desafiou o público com a seguinte pergunta:

“Uma criança consegue se lembrar até qual geração de sua família?”

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Rodrigo Martins

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