Leandro Kauray

Entrevista realizada em setembro de 2022, por Igor Bonze, Sirlene Carvalho e Jessica Tomáz, estudantes do curso de Pedagogia, inscritos(as) na disciplina eletiva “A Temática Indígena na Educação Básica” (FEBF-UERJ) sob supervisão da Profa. Kelly Russo (FEBF-PPGECC-NEPIIE-UERJ)

Leandro Kuaray Mimbi Mendes Chamorro, escritor e professor Guarani Mbya, graduado em Ensino de Matemática pelo curso de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente, mora na cidade do Rio de Janeiro e leciona na Escola Indígena da Aldeia Mbyá Guarani Ka’aguy Hovy Porã, em Maricá (RJ). Leandro também atua como professor de Língua Guarani no Programa de Línguas Estrangeiras Modernas (Prolem) da UFF. Sua trajetória de escritor é mais recente: publicou o conto “Kuaray e jaxy”, na coletânea “As queixadas e outros contos guaranis” (Editora FTD, 2013), organizada pelo escritor indígena Olivio Jekupe e recentemente lança como co-autor do livro “Teko Hypy: A origem do mundo” (Negalilu Editora, 2022).

O livro “Teko hypy, a origem do mundo” é baseado em um conto tradicional Guarani, segundo o qual Nhanderú Tenondé concebeu a mulher e o homem por meio da espiga do milho e todas as pessoas nasceram iguais para viverem juntas no mundo imperfeito. O maior destaque do livro é justamente, mostrar uma visão não-ocidentalizada e não-hegemônica da criação do universo. Em “Teko hypy, a origem do mundo” é narrada segundo a cultura Mbyá-Guarani, etnia indígena originária do território brasileiro, paraguaio, argentino e uruguaio. Um livro ilustrado e bilíngue (português-Mbyá-Guarani) de autoria de Ariel Ortega Kuaray Poty, Leandro Kuaray Mimbi, Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro. Escrito a partir de história oral, com base em narrativas poéticas e lúdicas propagadas por muitas gerações, em longas rodas de conversa junto ao fogo, na companhia de ka’a (erva-mate) e do pytenguá (cachimbo).

Abaixo, apresentamos um pouco da ótima conversa que tivemos com o co-autor do livro, Leandro Kuaray, em setembro de 2022, através de plataforma digital.

Entrevistadores: Como foram pensadas as ilustrações do livro? Quais foram as inspirações?

Leandro:Para responder essa questão é preciso pensar o princípio, o começo. Nós Guarani, não temos imagens do que seria o começo, como seria Nhanderú, nosso deus, como se apresentaria? Não temos ilustrações, até agora não temos uma figura de como seria esse deus, não é como na cultura ocidental que tem esse deus com barba branca e cabelo brancos e olhos azuis, essa imagem que se utiliza quando se fala de deus todo poderoso. Nós, Guarani, não temos essa imaginação, até porque na casa de reza, onde fazemos o ritual, não tem uma imagem que remete a essa memória. O que temos realmente é a conversa com o espírito de deus e a iluminação dele, sua palavra e o sentimento em relação a esse pai verdadeiro.

Talvez, no livro a gente tentou ilustrar essa memória para que o povo não-indígena tenha um pouquinho da noção sobre que o povo Guarani tem também essas imaginações… É claro que nesse livro, identifiquei agora, não tem uma mão Guarani no desenho. A Sofia Pinheiro tem algumas ilustrações e a Patrícia que também é desenhista, também. São uma mistura de artistas, desenhos, na verdade. É o que podemos entender como um complemento do livro, visando que o povo não-indígena pudesse entender sobre esse tema da origem do muno na visão Guarani. Mas é claro que para o povo Guarani, talvez possamos dizer: “Como eles (não-indígenas) desenharam Nhanderú, o deus, como seria isso?”, talvez tenha essa crítica, seria uma crítica boa, para repensar a próxima vez, ter outro cuidado de colocar os desenhos falando sobre o deus todo poderoso, para nós.

Tem uma parte do livro que fala muito bem do começo dos Guarani, como foram criados e a importância do milho para a nossa cultura. Por isso que os Guarani velam muito para que isso, essa memória de sua origem, perpetue dentro da cultura. Foi a partir de milho, que é a alimentação principal dos Guarani até a atualidade, que Nhanderú criou os Guarani. Um povo que surge da espiga de milho, daí que vem a necessidade de se plantar esse alimento, de cuidar dele e de levar esse milho para se consagrar; porque é justamente no período da colheita de milho que fazemos a principal festa da cultura Guarani, que é a festa do batismo. É durante a festa do milho que a criança recebe um nome. Através dessa cerimônia do batismo que as crianças vão adquirindo um nome. Achei essa parte do livro muito interessante, porque vemos que os indígenas agora, no geral, possuem vários tipos físicos: muitos são branquinhos, não têm a pele avermelhada assim como eu. Então, não existe só uma cor de pele que defina a identidade indígena, assim como acontece no desenho do milho, que apresenta variedades distintas de cor. Mesmo sendo indígena, temos várias tonalidades de pele. Essa parte que eu mais gostei do livro, porque na verdade, não devemos caracterizar os Guaranis como “tem que ser assim”, ou “deve ser assim”. O livro trouxe uma visão realista, mais concreta dessa diversidade indígena.                

E: Quais foram as maiores dificuldades encontradas durante a produção do livro?

L: Isso acontece porque a realização de um livro é um processo longo, que tem vários momentos… Aqui no Brasil, por exemplo, não tem uma unificação de como seria a escrita real dos Guarani porque em cada região os Guarani usam a grafia de diferentes jeitos, os sons são diferentes, como nesse livro… Eu morando aqui no Rio de Janeiro e outro escritor ou escritora que colaborou comigo para fazer, ele é lá do Rio Grande do Sul então, essas diferentes formas de escrita demandaram mais tempo pra gente definir o livro. Por exemplo,  aqui no título, a ideia de começo, na verdade ‘TEKO HYPY’ que é o começo , a origem ou como podemos chamar o nascimento de uma cultura ou de um universo, então, ‘TEKO HYPY’ ele no momento inicial da escrita do livro, a gente  escrevia sem o ‘H’ Parecia ‘teko ypy’  e não  ‘TEKO HYPY’ então eu fui pesquisando como que  realmente os guarani falavam. Claro que os guarani vão entender do jeito que você falar, porque não é a escrita que vai informar a fala correta, só que em um livro a gente tem que  fazer a tradução da linguagem oral para a escrita. Essa  foi a maior dificuldade:  conceituar na escrita, como que podemos colocar, para que o povo guarani, o estudante da língua guarani, entendesse um pouquinho mais sobre a estrutura da sua própria língua né? Como poderíamos ir colocando.

E: A falta de reconhecimento da língua Guarani no Brasil foi uma dificuldade na hora de traduzir?

L: Sim, essa discussão sobre a forma da escrita foi realmente a dificuldade mais relevante de todo esse processo. Foi difícil de conceituar de forma comum, entre todos os autores e autora. Claro que se fosse em outra época eu falaria: “Ah não! vou escrever sem o ‘H’! Eu vou escrever desse jeito”, mas agora eu estou compartilhando muito com as outras pessoas essas questões, amadurecendo no debate sobre a língua guarani com outros guaranis e outros escritores. Então, eu acato todas as ordens, né? (Risos). “Qual maneira que ficaria melhor?” “Dessa forma ou de outra?” Vamos perguntando e convesando e aprendendo juntos, né?

Parece que esteticamente o título ficou um pouco melhor assim: ‘TEKO HYPY’, que é a ‘origem do mundo’. Mesmo que você fale para o guarani ‘TEKO YPY’, sem a letra agá, isso não tem importância, ele vai entender perfeitamente o que você está querendo dizer. Então, essa foi uma das dificuldades. Eu achei que a história também poderia ter sido gravada em CD, ou algum outro suporte, com alguém falando na língua guarani, para mais pessoas conhecerem essa língua. Porque talvez a maioria dos adultos da aldeia, não sabe ler e não vai poder estar visualizando as folhas do livro, então, mesmo se não estiver folheando o livro, poderia ouvi-lo, saber o que está dizendo cada página né? Seria interessante fazer. Mas o bacana é que esse livro foi feito também para pessoas com deficiência visual, em braile. Então, ele foi interessante por causa disso e porque também veio com atividade para esse grupo específico. Então, acho que a maior dificuldade foi essa na hora de traduzir, da língua oral para a escrita e também para contar a história de um jeito que tanto o povo guarani, quanto o não guarani entendessem a cultura e a estrutura da língua guarani nesse livro.

 E: Qual a importância dos autores indígenas para a literatura brasileira?

L: O livro é uma ferramenta importante, para nós mesmos mostrarmos sobre a nossa cultura, nossa vida, nosso mundo e a nossa forma de ver o mundo. Porque desde tempos imemoriais ou talvez desde que chegaram os portugueses, sempre o que saia por escrito em relação ao povo indígena, sempre era através da escrita dos colonizadores. Agora temos a ferramenta da escrita, conhecer um pouco dessa tecnologia que parte da escrita e da nossa cultura que antigamente os portugueses usavam para colonizar. Agora nós estamos nos apropriando dessa tecnologia para tentar fazer o contrário. Mas claro que isso não é de um dia para o outro, esse processo da escrita para escritores indígenas e para não-indígenas e também para quem trabalha na escola indígena, tem mais ou menos 20 ou 30 anos. Desde a década de 1980, começaram a sair algumas escritas dos autores renomados, como Daniel Munduruku e Eliane Potiguara, que são bastante conhecidos hoje em dia. Através deles foram publicados os primeiros livros que foram inspirando vários escritores indígenas, como o Olivio Jekupê que fala da cultura Guarani. Só que até a atualidade, ainda são poucos os livros que apresentam a tradução também para o Guarani, além do português. Então, esse nosso livro talvez seja um livro diferente justamente porque vem com duas línguas, no caso Português e Guarani. Importante dizer que é a língua Guarani uma das línguas indígenas mais preservadas e mais usadas como língua oficial. Cerca de 70% da população fala o idioma, talvez pensando nisso, eu acredito ser a língua indígena mais falada tanto no Brasil, como no Paraguai, na Argentina e em alguns grupos falantes na Bolívia. Então, pensando em alcançar todo esse público falante guarani ou que querem aprender Guarani, um livro como esse talvez seja uma ferramenta bastante interessante para o fortalecimento e a visibilidade dessa língua indígena.

E: Para encerrar a nossa entrevista, gostaríamos de saber quais cuidados os professores não-indígenas precisam ter ao trabalharem livros de autores indígenas com seus alunos?

L: Em relação ao uso da literatura indígena dentro da escola não-indígena, o cuidado que deve ter é não colocar esses materiais como uma história do passado, algo que foi contado pelos indígenas e que não existe mais… Quando os professores derem  informações sobre esse tipo de literatura, é preciso trabalhar com livros de autorias indígenas e também trabalharem de modo a mostrar como esses livros são atuais, porque parece que quando você lê um livro que fala sobre a cultura Guarani, sobre os mitos, lendas, comida, sobre o mundo indígena, parece que continua sendo de tempos antigos… Como se não existissem mais indígenas ou que essas histórias não fossem mais contadas nas comunidades indígenas. Precisamos ter cuidado nesse sentido, falar que esses autores estão aqui no presente e que talvez possam dialogar junto com as populações escolares. É importante abrir mais espaço para essa parte também, para que os alunos conversem com os autores. Claro que tem a parte da história mesmo, das narrativas contadas no passado, por exemplo, da origem do mundo, mas é importante trabalhar com os alunos que o livro é fruto de uma história que está sendo escrita agora, nesse momento, por autores indígenas contemporâneos. Então, talvez seja uma das ferramentas que devemos usar agora, nós indígenas, visto que temos todas essas mídias chegando na escola. Talvez isso proporcione um pouco mais de informações atualizadas para que professores não-indígenas também reflitam sobre o que estavam fazendo e quais situações vão usando esse tipo de conversa, de diálogos com os autores indígenas. Claro que os professores tem suas próprias dinâmicas de trabalho quando trabalham o livro de autoria indígena, só que também existem professores que são indígenas e professores não indígenas, então cada pessoa é individual, cada um tem seu próprio pensamento em relação a forma de ensino.

Outra vantagem de um livro bilíngue português-guarani, é que ele pode ser usado tanto na escola não-indígena, quanto na indígena. A história escrita está no português, então, trabalhar esse tipo de narrativa dos livros indígenas ou discutir como a escrita indígena está presente neste livro, pode ser interessante para discutir sobre como o povo não indígena reflita sobre suas ideia de “índio”, o que significa índios na atualidade. Pensando bem, talvez essa seja a maior dificuldade na hora de colocar a literatura indígena na sala de aula, porque quando se fala de literatura indígena, parece que só existe um grupo de indígena.

Neste livro por exemplo, tento colocar que a narrativa Mbya Guarani é diferenciada. Em nenhum momento fala aqui no título que é indígena ou segundo os indígenas, então aqui já especifica qual é o povo. Isso é importante o professor estar atento para fazer essa distinção também ao escolher um livro de literatura indígena. Por exemplo, a cultura é completamente diferente de cada uma das várias etnias que existem aqui no Brasil. No Brasil tem mais de 305 etnias registradas e mais de 250 línguas faladas, então é interessante quando mostra um tipo de livro escrito por Guarani, por indígena pensar e dar as informações sobre essa cultura. Sobre cada grupo. Acredito que essa é a forma que deve ser trabalhada na escola. E não é ruim de mencionar outras etnias ou falar de etnias especificas de indígenas.

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