Entrevista: Ana Kariri, artista e liderança indígena

“A Arte pra mim foi sempre um caminho que me fazia entender que daqui a pouco eu estaria de volta no meu território.”

Entrevista realizada por Rafaela Souza Palmeira, estudante do curso de História da unidade Maracanã da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), bolsista do Núcleo de Estudos sobre Povos Indígenas, Interculturalidade e Educação – NEPIIE/FEBF, no dia 04 de maio de 2022, por plataforma digital.

Ana é liderança indígena da etnia Kariri da Paraíba, arte educadora e artista contemporânea. Ela também é idealizadora e coordenadora de projetos pelo Coletivo Tuxaua-Rede de Saberes Indígena, integra o Conselho de Cultura de Duque de Caxias e faz parte da rede de articulação Nacional RENIU- MULHERES e do Movimento Mundial Mulheres Reais de Arte e Poesia.

Nesta entrevista, ela fala do papel da arte e da ancestralidade para o seu reconhecimento como indígena; da lei 11.645, que torna obrigatório o estudo da história e da cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio e da sua participação no Acampamento Terra Livre 2022. “Sempre soube que eu era kariri, remanescente dos banabué.”

Como foi o seu caminho de busca da ancestralidade para o seu reconhecimento como indígena? Como a arte favoreceu essa caminhada?

Ana – Eu sempre soube quem eu era. Eu nasci no meu povoado, o meu povoado faz parte dos Kariri, remanescente dos banabué (Esperança Remígio e Lagoa do Mato). Eu cresci com a minha bisa, com a minha avó e com as minhas tias e tios-avós. A minha mãe, em 1972, precisou me deixar lá. Então, eu não conheci a minha mãe na minha infância, até os meus oito anos.

A minha primeira infância foi dentro do meu povoado, com a minha língua Kipeá. Eu faço parte dos Kariri velhos da Paraíba. A minha avó hoje é a Kariri mais velha da Paraíba, ainda morando em Lagoa do Mato e Esperança.

Conheci minha mãe quando eu estava com oito anos. Ela voltou para me buscar. Então, venho para a Baixada Fluminense. Morei ali durante um tempo, quando minha mãe conseguiu comprar uma casa no Jardim Anhangá.

Aí, vem a questão do meu povo. Durante muito tempo, meu povo precisou ficar silenciado para sobreviver. As mais velhas deixaram bem claro que ia chegar o momento em que nós iríamos ter esse não mais silenciamento. Nossa retomada está prevista aí para os próximos anos. Então, hoje a gente faz o caminho de volta, fortalece os outros parentes, tanto da nossa etnia quanto na de outros (Pankararu).

Hoje, parte da minha etnia Kariri da Paraíba está em território Tabajara, e outra parte está em Campina Grande. Eu sou a única que tenho ainda povoado. Eu não, a minha avó, minha tia… Eu tô nesse translado, nessa ida e volta de cidade e aldeia, mas espero um dia chegar lá e voltar. Então, enquanto isso, eu faço fortalecimento com outras etnias, e também com as minhas.

Hoje eu estou em contexto urbano, me dividindo entre Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Neste momento, estou em Belo Horizonte, na Serra do Cipó, onde meu companheiro tem uma reserva. A gente trabalha aqui a preservação do Cerrado.

Eu sempre trabalhei com artesanato, eu cresci com as minhas avós e a minha bisavó, tecendo nas casas de farinha, minha mãe costurando, a gente trabalhando os filtros dos sonhos, as peças de agave. Minha infância foi dessa forma.

Eu cresci tecendo, eu cresci colhendo, cresci fazendo as bonecas, as petecas de palha de milho. Quando eu venho para a cidade, esses eram os meus brinquedos, essas eram as minhas coisas, que me faziam matar um pouco a saudade da minha terra. Minha tia tinha uma barraca de comida típica do Nordeste aí na Feira de Duque de Caxias. Eu pendurava meus filtros dos sonhos, ainda menina, com nove ou dez anos, e as pessoas compravam. Era uma forma de eu manter esse trabalho manual, ancestral do meu povo. Eu vivo a arte como um todo. A arte faz parte desse legado e memória de meu povo. Um caminho que me fazia entender que, daqui a pouco, eu estaria de volta no meu território.

Quando adolescente, eu passei a ir pelo menos uma vez no ano, principalmente nos rituais, para a Paraíba, para o sertão, Lagoa do Mato, que fica a três horas de Campina Grande.

Eu fui para o engajamento, ativismo político, lira de ouro, espaços culturais… Sempre levando os artesanatos, que era o meu meio de sobrevivência. Quando eu tive meu filho pequeno, o Bruno, que hoje está com trinta e dois anos, eu carregava uma bolsa de artesanato do lado e ele do outro. Todo mundo sempre me conheceu dessa forma, levando minha arte, meu artesanato, depois minhas telas, e hoje, esse processo de idas e voltas me faz estar em lugares como bienais europeias.

A pandemia foi o tempo que eu mais trabalhei, e minhas obras foram para outros espaços, outros países. Foi inacreditável, mas foi muito bom, porque houve uma coisa muito forte de todo mundo se reconhecer através das redes sociais.

Como professora, como você acha que a lei 11.645 deve ser desenvolvida nas escolas?

Ana – Infelizmente, o que a gente vê é uma falta de capacitação dos professores. Hoje tem um avanço muito grande na questão afro-brasileira, a gente vê dentro das bibliotecas comunitárias muitos livros que incentivam a cultura negra, porém existem poucos livros que incentivam a cultura indígena. A educação indígena geralmente ainda é vista como comemorativa, Dia do Índio, que nem é nosso dia, porque dentro da visão histórica, da historiografia, o dia do índio foi uma coisa totalmente diferente, foi um encontro na verdade, de lideranças, caciques, pajés, e lideranças políticas que estavam trabalhando os direitos. Isso não é contado, é apenas uma homenagem do dia do índio.

Esse ano, no ATL (Acampamento Terra Livre), a gente conseguiu que não tenha mais o Dia do Índio, porque nos inferioriza. Então, vai ser o dia dos povos originários. Já foi para tramitar e virar lei, para a gente também vai ser um avanço. Mas o que a gente vê é essa questão muito defasada, um despreparo. Existe um preconceito muito grande. São mais de trezentos e cinco etnias, mas dentro do livro de história, tem um estereótipo de uma mulher, Iracema, cabelo negro, liso, corpo perfeito. Pelo menos agora, tem cerca de trezentos e cinco etnias, mais de duzentas e setenta e quatro línguas faladas…Como é que trezentas e cinco etnias têm esse estereótipo da Iracema? A gente vê que foi uma vulgarização da mulher indígena, que é colocada dentro dos livros de história.

Tem uma outra questão também, que eu pude perguntar aos escritores indígenas: Eliane Potiguara, Daniel Munduruku, Cristino Wapichana. Eliane fala, Daniel também… A literatura indígena ela é muito recente, vem dos últimos trinta anos. Hoje há muitos escritores indígenas, mas tem muitos escritores não indígenas que falam por nós. Então, dentro das escolas há livros não indígenas, contando e rememorando as nossas histórias

Quando se fala da lei 11.645, eu acho que tem que ir para a base. Primeiro, a base dos professores, que se propõem mudar esse olhar deturpado e, também, a base das crianças, desde a formação da educação infantil até o ensino médio. Dessa forma, a gente constrói e reconstrói as raízes, tanto afro-brasileira quanto indígena, que na verdade são as raízes do Brasil.

Como foi participar da 18º edição da Mobilização do Acampamento Terra Livre (ATL) no ano de 2022?

Ana – Eu participo das edições do ATL desde a 1ª edição. Essa experiência do ATL 2022 para mim foi muito impactante, porque eu vi e revi muitos parentes que a gente não via desde o início da pandemia. Sentimos o impacto dos que foram embora. A gente sentiu falta, sentiu o impacto também de todos que estavam ali, ausentes, mas, de uma certa forma, muito presentes, porque a gente entende que a ancestralidade continua viva, os espíritos continuam, apesar de estarem em um local descansando, para se refazer. Fiquei feliz por ver muitas caras, muitas pessoas que eu não tinha mais notícia.

Agora, após a ATL, nós conseguimos avançar também na discussão de ter, na fala das lideranças aldeadas, os indígenas em contexto urbano. A partir do momento em que a fala é uma só, fica difícil o poder público tirar os nossos direitos. Então, nós exigimos muito isso.

Eu fiz parte de uma mesa falando da educação indígena. Levei essa dificuldade de a gente, por estar no contexto urbano, não ter essa representatividade de aldeia. As próprias academias não nos aceitam. Então, foi muito forte, foi impactante, mas também foi positivo, enquanto construção. Estava todo mundo muito voltado para a garantia dos direitos.

Eu estava no Museu do Índio até o início deste ano (abril de 2022). Teve uma galera da FUNAI que não me aceitou enquanto indígena, dentro do museu, trabalhando como CLT. Foi outra coisa absurda. Eu não aceitei eles me censurarem nas palavras como retomada, nas minhas ações enquanto liderança… Aí, fui convidada a me retirar. Tentaram me colocar justa causa, fazendo um monte de outras coisas, dizendo que eu tinha que voltar presencial, quando meu trabalho poderia ser remoto, como foi o ano inteiro.

No enfrentamento da pandemia, eu fiz vários vídeos dentro das aldeias. Fiz exposição de arte junto com as crianças, que culminou em uma exposição para o Museu de Astronomia, e o Museu do Índio nessa parceria. Os meus trabalhos não têm mais valia, só porque eu tenho que estar de 9h às 18h e de segunda a sexta? E não poder falar determinadas coisas, que fazem parte do meu povo? Eu não concordei e foi forçada a minha saída. Também denunciei isso no ATL. Eles dizem fazer parte da representação, quando a gente sabe que é um museu que está fechado há mais de cinco anos, a maior parte. Tem uma equipe muito pequena comprometida com as causas indígenas, e a outra equipe da FUNAI, que está totalmente desmantelada, como está a FUNAI, desmantelada em todo o Brasil, desrespeitando os nossos direitos.

Gostaria de acrescentar mais alguma informação?

Ana- Eu acho que a única coisa mesmo é ter essa possibilidade de cada vez mais indígenas, mulheres, professores, orientadores, estarem nos espaços acadêmicos, sendo protagonistas de sua própria história. Até para que algumas teses sejam revistas. Durante um bom tempo, meu povo foi considerado dizimado, quando na verdade teve apenas um processo de expulsão e morte, mas não dizimado na totalidade. Esse contexto histórico precisa ser mudado, se não, fica sempre falando o mesmo texto, as academias escutam, mas não mudam nada. Que os livros históricos, os livros que vão ser apresentados dentro da academia, sejam ou livros que trabalhem esse protagonismo ou professores que trabalhem a oralidade, para valorizar e fortalecer suas etnias.

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