Os povos de guaná-pará no ontem e no hoje

Seminário realizado pela Prefeitura de Niterói contou com a participação de Natalia Machado, antropóloga e pesquisadora da ressurgência Puri, que redigiu o texto a seguir. Ela também é uma das autoras do “Atlas Etno-histórico da Ressurgência Puri”, que está disponível no acervo do Opierj

 

Natalia Carvalho Médici Machado

Doutoranda no CPDA/UFRRJ

 

    Da esquerda para a direita, Natalia Machado, José Guajajara e Julia Xavante. Reprodução: Leticia Freire

     

    No dia 27 de novembro ocorreu o Seminário “Indígenas na Região da Guanabara: Passado e Presente”, realizado pela Prefeitura de Niterói. Nele tivemos a oportunidade de conversar sobre a região de Guaná-pará (seio do mar, em tupi antigo) e construir coletivamente conhecimentos sobre esse território de 380 km², foz de 35 rios, 21 ilhas e atualmente cercado pelos municípios de Duque de Caxias, Magé, Guapimirim, Itaboraí, São Gonçalo, Rio de Janeiro e Niterói, mas com uma bacia hidrográfica que abrange também Belford Roxo, Mesquita, São João de Meriti, Nilópolis, Nova Iguaçu, Tanguá, Maricá, Rio Bonito, Cachoeiras de Macacu e Petrópolis.

    Essas características físicas estão em relação com comunidades humanas desde, pelo menos, 8000 anos antes da invasão europeia nesta área. Logo, pensar sobre Guaná-pará é pensar sobre um território originário e falar sobre ele é necessariamente falar sobre os povos que o habitavam e continuam o habitando.

    A datação de 8000 anos se dá pela presença de sambaquis na região de Niterói. Essas construções são testemunhos físicos na geografia local da vida dos povos que habitavam a região, reunindo elementos da cultura material, funerária e até alimentícia e mostrando a complexidade e densidade das populações.

    Essas construções também são retratos das relações estabelecidas por essas comunidades. Sambaquis mais recentes, cerca de 2 mil anos antes da invasão, também guardam elementos de cultura material Jê, como cerâmicas, mostrando as interconexões entre povos sambaqueiros e povos macro-jê.

    A chegada dos povos tupi nesse território também é uma história de interconexões. O tronco tupi é um tronco linguístico originário com cerca de 40 línguas com uma origem comum amazônica. O mundo tupi era um mundo muito conectado, com relações complexas entre aldeias de alianças, guerras e casamentos.

    Nesse cenário geopolítico tupi complexo, a chegada dos europeus e seu consequente estabelecimento nesse território não teria sido possível sem estabelecimento de alianças com os povos originários. Nessa chegada também nasceu a categoria “indígena”, ou aquele que não era europeu, uma categoria estabelecida a partir da relação com o invasor.

    Entre 1554 e 1567 essas alianças ficaram mais evidentes. A Aliança Tamoio (em tupi, os mais antigos), contrária aos Temiminós (em tupi, os mais novos), na disputa do território de Guaná-pará, se aliou aos franceses; e os Temiminós, que habitavam a ilha de Paranapuã (Ilha do Governador), se aliaram aos portugueses.

    A aliança francesa-tamoia teve êxito militar inicialmente, expulsando portugueses e temiminós para a costa norte do Rio de Janeiro e Espírito Santo. Porém, em 1567, com ajuda de temiminós e goytacaz e outras etnias do Espírito Santo, Portugal retoma o controle da Guaná-pará, expulsando franceses e dispersando lideranças tamoia.

    Após a guerra, os temiminós não retornaram ao seu território na Ilha do Paranapuã. Como prêmio pela vitória e para assegurar controle bélico da região, os indígenas temiminós receberam dos portugueses terras do outro lado da baía de Guaná-pará, onde se estabeleceu o que viria ser o Aldeamento de São Lourenço na região que hoje pertence ao município de Niterói

    O Aldeamento de São Lourenço foi um exemplo da política de aldeamento, um projeto colonial que tinha como objetivo ocupar o território, reservar mão de obra e assimilar indígenas. Nesse projeto etnocida, existiam diversas etnias que se relacionavam não apenas entre si, mas também com colonos e missionários. Os aldeamentos, então, tiveram papel importante na assimilação dos povos indígenas, mas também foi um espaço indígena, uma vez que variados povos encontravam diferentes brechas onde era possível recriar suas identidades

    É necessário sempre apontar o assassinato em massa de milhares de indígenas e o desaparecimento completo de inúmeras etnias ocorrido no Brasil colônia. Todavia, uma historiografia que enxerga indígenas apenas como vítimas sem agência de um extermínio ou integração forçada marginaliza a ação de diversos grupos étnicos, sua capacidade criativa de resistência e dinamismo político. 

    É importante também pensar os aldeamentos do Império enquanto aparelhos transitórios, necessários apenas até que os indígenas se misturassem com o restante da população. Nessas circunstâncias, a questão indígena se tornou uma questão de terras. A Lei de Terras de 1850 reconhece a posse da terra para indígenas, mas determina quais seriam esses indígenas (sedentarizados, catequizados e fiéis à coroa) e manda incorporar às posses da União as terras de indígenas que já não viviam aldeados. Então passou também a caber ao Estado definir quem era indígena estabelecendo quem tinha direito à terra. Filhos de indígenas e colonos não eram considerados indígenas e, portanto, sem direito à terra.

    Essa capacidade de estabelecer quem era ou não indígena levou ao fim de São Lourenço, extinto em 1866, sob alegação de não haver mais indígenas na aldeia. Um ano depois, um grupo de indígenas tentou reivindicar as terras para refundar a aldeia, sem sucesso, já que eram terras de grande interesse para o município de Niterói. O censo de 1872 dá conta de 24 caboclos, termo usado na época para designar indígenas, contudo era comum a alegação de que estes não mais seriam indígenas devido à miscigenação.

    O fim da política de aldeamento em 1889, o Estado brasileiro deixa de reconhecer formalmente a existência de indígenas na região. A historiografia oficial, seja alinhada aos interesses coloniais ou a luta anti-colonial, também seguiu essa crônica da extinção,  o princípio de anulação do indígena enquanto sujeito político e histórico.

    Com o fim do Império e, com isso, a política da coroa em relação aos povos indígenas da região, bem como a crônica da extinção politicamente interessada se desenhando, o indígena passa a ter valor no imaginário popular como algo do passado, com modos de vida cristalizados, o chamado “índio arquivado”. Seguindo essa tendência, no final do século XIX, na virada do Império para a República, o Duque de Saxe doou um palacete na região do Maracanã para servir como museu para estudo de populações originárias da região. 

    Em 1910 passa a funcionar no prédio o Serviço de Proteção ao Índio e Localização do Trabalhador Nacional (SPILTN), criado pelo indigenista militar Marechal Rondon. Se torna SPI em 1918. Em 1953 foi fundado pelo antropólogo Darcy Ribeiro dentro da estrutura do SPI, o Museu do Índio, no casarão. Esse passou a ser o primeiro museu sobre populações originárias da América Latina.

    Na década de 1960, o Museu passou a ser gerido por outro órgão indigenista, o Conselho Nacional de Proteção ao Índio (CNPI) e, por fim, em 1967 os três órgãos, Museu, SPI e CNPI se juntam em um único órgão, a atual Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI).

    Mas a extinção do SPI não foi meramente decisão administrativa. A própria existência do SPI no período da Ditadura Militar ficou inviabilizada após a divulgação do Relatório Figueiredo, documento que expõe inúmeros delitos e transgressões aos direitos humanos enfrentados pelos povos indígenas ao longo do período da ditadura. Esse documento ficou guardado no antigo museu e desapareceu em 1967, sendo reencontrado apenas em 2012. Hoje sabemos que foram mais de 8 mil indígenas assassinados durante a ditadura, além dos campos de concentração e trabalho forçado. 

    Após 24 anos de funcionamento dentro do casarão, em 1977, o Museu foi transferido para a zona sul do Rio de Janeiro, motivado pelo primeiro projeto de demolição do prédio, que daria lugar a uma estação de metrô, que não ocorreu.

    Mas em 2006, o espaço é ocupado por indígenas após um congresso indígena do Instituto Tamoio dos Povos Originários. O nome faz referência a Confederação dos Tamoios, recuperando essa história como uma revolta indígena contra colonização e reforçando a ocupação constante desse território por populações indígenas.

    Mesmo com a desocupação violenta de 2017, o espaço volta a ser ocupado por indígenas, com o nome de Aldeia Maraka’nã, utilizando a grafia para demarcar o caráter indígena do local e recuperar o protagonismo na nomeação do território. Nesse território hoje funciona a Universidade Indígena Aldeia Maraka’nã.

    O seminário contou com a presença de dois grandes professores desta Universidade, o cacique Urutau e Júlia Otomorinhori’õ. Júlia reforçou a questão do protagonismo étnico a da etnicidade, entendendo a retomada de etnicidade como central na Universidade Indígena. Com a crônica da extinção e o apagamento histórico da etnicidade indígena, a retomada dessa identidade étnica é um passo político importante na Universidade, reforçando que não é “descendente de indígena”, mas sim indígena que teve a identidade negada. 

    Julia também trouxe o conhecimento indígena do grafismo. A partir da uma instalação de diferentes grafismos no seminário, Júlia levou os participantes por um rio de escrita indígena, mostrando como os grafismos são formas de transmitir mensagens para quem sabe seus significados.

    Urutau focou na questão indígena contemporânea de Niterói. Trazendo histórias da ocupação indígena de Itaipu, reforçou a ligação ancestral indígena com os sambaquis, locais também de enterramentos de populações sambaqueiras originárias.

    Segundo Urutau, Guarani e Guajajaras ocuparam a região de Itaipu, mas foram alvos de ataques. Parte das ocas construídas foram criminalmente queimadas e outra parte foi removida pela empresa de limpeza urbana, sendo noticiado como 3 toneladas de lixo por jornais locais. 

    O cacique reforçou que o poder público sabia do caráter originário do território, até pela cobrança de uma taxa municipal conhecida como “Imposto do Índio”, mas que esse conhecimento foi ignorado. 

    Considerando a perspectiva pedagógica da Universidade do aprender-fazer-ensinando, o público presente no seminário também foi um ponto importante no encontro. Amanda Goytaca e Vivian Puri reforçaram a importância do reconhecimento e pertencimento étnico promovido pela Aldeia Maraka’nã.

    A história da presença indígena no território de Guaná-Pará é longa e complexa, mas reforçar tanto sua ancestralidade quanto sua contemporaneidade, em especial reforçando o protagonismo étnico e retomadas de terras e etnicidade, são uma forma de combater o etnocídio iniciado na invasão européia desse território.

     

    1 DE ALMEIDA, M.R.C. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013

    2 AMOROSO, M. Terra de Índio: Imagens em Aldeamentos do Império. São Paulo: Terceiro Nome, 2014

    3 Conceito cunhado por Viveiros de Castro no livro “A inconstância da alma selvagem” (2002)

    4 O conceito de “índio arquivado” foi discutido pelo antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro no livro “A Inconstância da Alma Selvagem” (2002)

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    Julia Lima

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