Texto: Arthur Leal – Site Jornal O Globo
Prefeitura defende que pessoas estão se passando por indígenas; imagens mostram ocupante sendo imobilizado e celular quebrado durante ação. Grupo questiona sobre decisão do STF que impede despejos
Imagem: Homem foi imobilizado por agentes da PM e da prefeitura de Mangaratiba durante desocupação — Foto: Reprodução
As dezenas de indígenas que, há dois meses, passaram a ocupar um território do Parque Estadual Cunhambebe, no Vale do Sahy, em Mangaratiba, na Costa Verde do RJ, perderam, nesta segunda-feira (11), a queda de braço com a prefeitura pelo direito de continuar ocupando a área. Após decisão judicial que autorizou a reintegração de posse do local, agentes do município, com apoio de policiais militares, foram até até o parque e realizaram o despejo. Mais uma vez, os indígenas acusam agentes municipais e estaduais de truculência, afirmam que um aparelho celular de um homem foi quebrado por filmar a ação e questionam, também, o não-cumprimento por parte do judiciário, segundo eles, de uma decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, que prorrogou até o fim de outubro o veto a despejos e desocupações, por conta da crise da Covid-19, em áreas onde não há risco de vida.
O local é o mesmo onde, em meados do mês passado, o prefeito de Mangaratiba Alan Campos da Costa, o Alan Bombeiro, protagonizou uma discussão com os ocupantes da área, chamando-os de “enfeitados”, o que causou revolta por parte dos indígenas, que retrucaram chamando-o de “ladrão”. Na ocasião, ele foi ao local acompanhado de servidores, notificá-los de decisão da Justiça que ordenava a interrupção imediata das construções no parque, e afirmou que aquelas pessoas não eram indígenas – posição que é sustentada pela prefeitura e lembra a disputa envolvendo os ocupantes da Aldeia Maracanã, em 2013, na capital. Nesta segunda, ele esteve de novo no local, e disse que “as cerca de 20 pessoas” vão ali para passar o fim de semana e afirmou ainda que “índio é folclore”.
– Nós recebemos a determinação da Justiça para reintegração de posse, aqui, da “aldeia de índio”, onde a Uni Índio (sic, União Nacional Indígena) vem sustentando toda uma história que para a gente agora, e para a Justiça, não é uma história legal. Queria deixar uma mensagem para os verdadeiros índios do Brasil, nossos indígenas, que fazem valer a nossa história, o nosso sangue, que algumas pessoas que estão aqui não representam vocês. Vocês vão ver que algumas cenas que vão ser direcionadas na mídia internacional e nacional (sic) pegam exclusivamente as pessoas que são baderneiras. A gente sabe que índio é folclore, coisa bonita. Se falassem aqui judicialmente que é uma área indígena, nós teríamos respeitado – disse o prefeito.
Parte da ação foi filmada pelos então ocupantes do território. Um vídeo mostra o princípio de uma confusão envolvendo pelo menos um indígena e policiais militares. O homem é imobilizado pelos agentes, enquanto pessoas gritam, pedindo para que os PMs o soltem. Outras imagens mostram agentes apagando fogueiras e interrompendo rituais que aconteciam naquele momento. “Esse é o nosso local de ritual, é sagrado”, diz uma mulher, que não consegue impedir a retirada.
– Cortaram a energia e a comunicação agora está difícil – conta a indígena Isabella Kariri. – Estavam filmando a agressão, quando um policial jogou o telefone no chão.
Imagem:Imagens mostram confusão com agentes da PM e da prefeitura durante desocupação em Mangaratiba — Foto: Reprodução
Eles também registraram uma foto do aparelho quebrado. De acordo com lideranças, após a ação, alguns indígenas se esconderam na mata, enquanto outros fizeram um acampamento na rua em frente ao Parque Cunhambebe.
A ação de reintegração de posse foi proposta pelo município de Mangaratiba contra o Instituto Estadual do Ambiente (Inea) e “ocupantes indígenas de qualificação incerta”. O município juntou ao pedido documentos emitidos pela Funai, atestando não haver legitimidade na reivindicação dos ocupantes de “ocupar terra ancestral”, já que eles são capazes e plenamente adaptados à sociedade, não gozando de tutela orfanológica prevista no Estatuto do Índio. A Funai informou, ainda, que não há terra indígena demarcada no Município de Mangaratiba.
Os ocupantes, segundo a Justiça, foram citados e não contestaram a ação. Eles juntaram aos autos instrumento de procuração para advogados de defesa. Contudo, não apresentaram nenhum documento que comprovasse que o representante que assinou a procuração como diretor da UNI possuía condições para outorga de poderes. Por essa razão, foi decretada a revelia do réu pelo juízo.
“Em análise da inicial e dos documentos que a instruem, verifico que o pedido autoral deve prosperar. A posse dos “ocupantes indígenas de qualificação incerta” (UNI – UNIÃO NACIONAL INDÍGENA) é recente, iniciada em 13 de maio de 2022, como documentado nos autos e amplamente noticiado na mídia, não possuindo os mesmos qualquer direito que justifique a sua manutenção na área reclamada. Diante da revelia do réu e por não haver provas contrárias às alegações do autor, está comprovada a continuação da posse da autora. Portanto, presentes todos os requisitos inseridos no artigo 561 do Código de Processo Civil.”
A reportagem questionou a prefeitura de Mangaratiba sobre a ação. Em nota, o município pontuou que, “considerando posição da Justiça, da Funai e do Inea, não se trata de uma ocupação indígena e sim de uma invasão realizada por cidadãos civis”, e que a atuação da prefeitura foi “somente para apoio institucional”. Apesar da confusão que é possível ser observada nas imagens, e é citada pelo prefeito, a prefeitura afirma que “não houve truculência durante a operação”, e que “a mesma aconteceu de forma pacífica”, mas pontua que “houve um fato isolado, no qual um dos invasores se negou a cumprir a determinação da autoridade policial presente e foi conduzido à delegacia”.
Imagem:Tela de celular quebrada, segundo indígenas, por agentes que estavam no local — Foto: Reprodução
O GLOBO também perguntou se foi prestado algum tipo de assistência às famílias:
“Informamos que a Secretaria Municipal de Assistência Social acompanhou toda a mobilização e permanecerá prestando apoio as pessoas que precisarem. Entretanto, pelas informações captadas até o momento, não há registro de desabrigados. Todas as pessoas que participaram da invasão vieram de outros estados e possuem residência fixa. A Secretaria de Assistência está acompanhando o caso de perto”, disse o município, também na contramão do que afirmam os indígenas.
A Polícia Militar, por sua vez, pontuou que não houve registro de presos durante a ação e que pertences e materiais recolhidos ficaram sob responsabilidade dos órgãos municipais. A corporação não comentou sobre o celular supostamente quebrado por agentes, mas ressaltou que a ouvidoria da PM está à disposição da população para denúncias, com anonimato garantido.
Imagem: Prefeitura diz que grupo, que há dois meses estava no parque, se faz passar por indígena — Foto: Divulgação
O Inea, por sua vez, disse em nota que não foi notificado da decisão judicial – apesar de ser parte interessada no processo – e que a desocupação foi realizada pela prefeitura de Mangaratiba sem participação do órgão.
O Tribunal de Justiça do Rio também foi questionado sobre o motivo de a desocupação ter sido autorizada pelo juiz Richard Robert Fairclogh, da Comarca de Mangaratiba, mesmo com decisão do Supremo que impede a autorização para ações deste tipo em casos onde não há risco. Mas este ponto não foi esclarecido.
Grupo se manifesta em nota
Em comunicado por escrito, os indígenas que ocupavam o local, representados pela União Nacional Indígena (UNI), disseram que foram “surpreendidos negativamente” com a “decisão arbitrária” de reintegração de posse.
“A UNI e os povos indígenas presentes no local, foram surpreendidos negativamente, na manhã deste dia 11/07/2022, com uma decisão arbitrária de reintegração de posse da sede do imóvel do INEA, uma área estimada em 3.667,21m², conforme descrito na petição inicial.
Ocorre que, o Inea, parte ré do processo, quedou-se inerte todo esse tempo, e com isso o Juízo de Direito da Comarca de Mangaratiba/RJ, julgou o processo à revelia, considerando que os fatos narrados na inicial são verdadeiros.
A UNI, por sua vez, se manifestou tempestivamente nos autos, onde foram juntados: procuração e embargos. Tais petições foram ignoradas pelo Magistrado antes da tomada decisória, o que entendemos ser cerceamento de defesa, descumprimento de preceito basilar de nossa Constituição Federal, principalmente no que diz respeito aos povos indígenas.
Na sentença, o Juiz determina a reintegração da área disposta no texto da petição inicial, todavia ressaltamos que o imóvel do INEA não estava ocupado, e que o oficial de justiça e os policiais que estão no local questionam a metragem alegada pelos indígenas, porém sem apresentar laudo técnico ou um profissional capacitado para isso.
Houve ainda uma visita do oficial de justiça ao local, onde se atestou a não existência de danos ambientais, bem como fora registrada a localização onde estava sendo feita a ocupação, restando evidente as alegações feitas na exordial.
Ademais, no cumprimento da referida decisão judicial, não há a presença de um topógrafo, profissional indicado para fazer a medição territorial correta e exata, impossibilitando o mapeamento correto para a demarcação. Desta forma, não se pode comprovar sequer que a ocupação está ocorrendo num local impróprio.
Por conseguinte, é nítida a má fé em exigir a retirada dos povos indígenas do local sem provas periciais no que cerne ao mapeamento do território e sem nenhum aparo a estes ou uma opção temporária de realocação como forma de resolução pacífica e temporária do litígio.
Para nós, é também incompreensível o “jogo de empurra” por parte do Ministério Público Federal e do Ministério Público Estadual. O primeiro, em 24/05/2022, declinou competência para o segundo. Porém, na última sexta-feira, o Ministério Público Estadual juntou parecer nos autos do processo de reintegração alegando o seguinte: “este membro do Ministério Público declara, no exercício da sua independência funcional, não haver interesse público que justifique a sua intervenção no processo em epígrafe”.
Além destes, Polícia Federal foi devidamente acionada pelas lideranças indígenas e pelo corpo jurídico, porém sem sucesso. Ao ser contatada, a PF informou que o MPF declinou competência em 24/05/2022, e com isso a sua atribuição se esgotou.
Tais delegações desnecessárias são provas suficientes do descaso para com a causa indígena, além de demonstrar interesse protelatório para que não houvesse resolução favorável aos povos originários, que desde o início da retomada vem sofrendo ameaças, agressões verbais e preconceito tanto por parte dos governantes quanto por parte da população.
Vale ressaltar que não foi determinado pelo juiz a presença de um profissional que pudesse fazer a metragem da área reivindicada, para o cumprimento integral da decisão judicial, restando comprovada a demarcação apenas pelos documentos protocolados junto a inicial nos autos processuais.
Sem tais ônus periciais que reafirmem o não pertencimento do território à Mangaratiba juntamente a falta de análise judicial aos embargos declaratórios, procuração e notas de apoio emitidas, é cristalino para nós a arbitrariedade conjunta dos órgãos nessa decisão desfavorável e inescrupulosa, onde a parte hipossuficiente neste caso, obtém constantemente seus direitos violados e sendo agredidos verbal e fisicamente por lutarem pé“.
Prefeito teve cargo cassado no início do ano
No início do ano, Alan Bombeiro e o vice-prefeito Alcimar Moreira Carvalho (Patriota) tiveram os mandatos cassados pela Justiça Eleitoral por abuso de poder político-econômico, por conta da contratação de mais de mil cargos comissionados temporários no período eleitoral de 2020, segundo a acusação, para angariar votos, mas a pena foi substituída pelo pagamento de multa e os cargos foram recuperados.