Guarani morto ao defender território pode ser primeiro santo indígena brasileiro

    “Esta terra tem dono.” A frase é atribuída ao guarani Sepé Tiaraju (1723-1756) durante a batalha em que tentava proteger 30 mil índios de uma remoção forçada pelo exército unificado dos reinos de Portugal e Espanha.

    Ele e outros 1.500 índios morreram no conflito que ocorreu na região da atual cidade de São Gabriel, no Rio Grande do Sul.

    Herói oficial registrado no Panteão da Pátria ao lado de figuras como Getúlio Vargas e Leonel Brizola, Sepé agora pode ser o primeiro santo indígena do país. O Vaticano autorizou em 2017 o início de seu processo de canonização. Desde então, ele já é considerado como “servo de Deus”.

    O processo pode durar anos, sem previsão de término. O indígena ainda terá de ser venerável, beato e, finalmente, santo. Nesse período, a relação com os fiéis é fortalecida e uma oração já foi escrita (leia mais abaixo).

    “A canonização confirmará o que já é realidade junto ao povo. Sepé Tiaraju foi santificado praticamente desde a sua morte e há muitos anos já é chamado de São Sepé pelas pessoas. Tem cidade chamada São Sepé, rua, mercado…”, diz o padre Alex Kloppenburg, 65, da paróquia de Dom Pedrito, cidade da região das Missões Jesuíticas, onde o indígena viveu —as ruínas das Missões são tombadas como patrimônio da humanidade pela Unesco.

    O fato de o papa Francisco ser tanto argentino como jesuíta pode trazer simpatia à causa brasileira no Vaticano, mas dificilmente irá acelerar o processo de canonização.

    Sepé deve ser transformado em santo não por operar graças e milagres, mas por ser considerado um mártir. Para o padre Kloppenburg, Sepé morreu também por sua fé —ele compunha a terceira geração de guaranis missioneiros, ou seja, católico de nascimento, sem ter sido catequizado.

    Mas o conceito de mártir da Igreja Católica foi ampliado, explica o teólogo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), frei Luiz Carlos Susin.

    “É mártir também quem deu sua vida pela vida do outro. Além disso, o caso de Sepé também se enquadra no que chamamos de ‘ódio à justiça’. Ele não é santo porque vai curar a doença de alguém, mas porque morreu defendendo seu povo”, explica Susin.

    Embora citado como um guerreiro, cuja força é lembrada pelo Centro de Tradições Gaúchas (CTGs), Sepé buscou um desfecho pacífico para o conflito. Antes da batalha que acabou com sua morte, ele tentou negociar diplomaticamente para que os 30 mil indígenas de sete cidades não precisassem abandonar suas casas.

    Ele buscava uma solução para o Tratado de Madri (1750) e chegou a viajar a Buenos Aires para negociar, mas sem sucesso. O acordo era uma atualização do Tratado de Tordesilhas (1494), que determinou os territórios a serem explorados por Espanha e Portugal.

    Os dois países descumpriam o primeiro tratado, disputando especialmente o território que hoje é o Rio Grande do Sul e o Uruguai. Por isso, a nova negociação previa que Portugal entregasse a cidade portuária de Colônia de Sacramento para a Espanha em troca da região das Missões no atual Rio Grande do Sul. As Missões argentinas e paraguaias, com outros 100 mil indígenas, não faziam parte do acordo.

      As Missões foram organizadas pelos espanhóis jesuítas onde hoje estão Argentina, Paraguai e Rio Grande do Sul.

      O território dos Sete Povos das Missões da porção gaúcha foi ocupados no século 17 pelos guaranis. Eles fugiam dos bandeirantes paulistas que os caçavam para vendê-los como escravos. Catequizados pelos jesuítas, criaram uma das sociedades mais organizadas do período.

      “As missões desenvolveram indústria, fundição, criação de gado, fabricavam tecidos. Exportavam couro e alimentos para a Europa. O sistema econômico era cooperativo, com divisão dos lucros e sem miséria”, diz José Roberto de Oliveira, autor de “Pedido de Perdão ao Triunfo da Humanidade” (Martins Livreiro, 2009).

      O pesquisador afirma que eles estudavam música, tinham corais e desenvolveram pintura e escultura. “Parte das obras que não foram saqueadas ainda podem ser vistas nos museus da região”, afirma.

      Em uma época de reis e rainhas, nas Missões já vigorava a democracia com eleições anuais para o corregedor de cada aldeamento.

      Sepé era o corregedor de São Miguel, cargo muito além de um cacique, porque acumulava funções também do que hoje seriam os poderes Judiciário e Legislativo. Por isso, antes de morrer, disse: “Esta terra tem dono. Nos foi dada por Deus e São Miguel”.

      Para os religiosos, a canonização de Sepé é também um reconhecimento ao povo indígena, mesmo que tardio. Os guaranis também entendem como positiva a canonização, menos pelo viés católico e mais pela visibilidade que pode trazer às comunidades e suas demandas.

      “Significa muito para tirar o preconceito contra nós. Entender a cultura indígena é muito importante, somos filhos da natureza. Queremos ser valorizados, gostaríamos que entendessem mais nosso povo”, opina o cacique Anildo Romeu, 28, da aldeia guarani de Santo Ângelo, na região missioneira.

      Romeu lidera 40 pessoas, que cultivam a língua guarani e vivem da venda de artesanato de visitantes do Roteiro das Missões. Não há uma escola específica para as crianças indígenas da aldeia e eles recebem a visita de um médico quinzenalmente. “A gente tem espiritualidade, é uma religião diferenciada. No nosso dia a dia mantemos a própria cultura.”

      Os guaranis da época das missões também mantinham a própria religião, mesmo catequizados, explica a antropóloga Suzana Cavalheiro de Jesus, professora do curso de Educação do Campo, da Universidade Federal do Pampa (Unipampa).

      “Enquanto Sepé dialogava com os jesuítas, os guaranis podiam manter sua própria religião. Sepé Tiaraju tinha esse papel meio de enganar os jesuítas porque a liderança dele dava condições para que conservassem sua cultura. Em nenhum momento a gente vê essa conversão plena”, diz a antropóloga.

      Sepé povoa o imaginário dos gaúchos e foi retratado em obras literárias em diferentes épocas. Desde o poema épico “O Uraguai” (1769), de Basílio da Gama, passando por “Lunar do Sepé” (1902), de Simões Lopes Neto, até o romance “Sepé Tiaraju” (1975), de Alcy Cheuiche, que já recebeu uma dezena de edições.

      Os dois últimos registraram o “lunar” de Tiaraju, uma mancha que tinha na testa e, dizem, brilhava durante a noite, o que aumenta o mito ao redor de sua figura.

      “O lunar de Sepé Tiaraju brilhou durante vinte e quatro anos em todos os rincões dos Sete Povos Missioneiros, e ainda hoje há de brilhar nas negras consciências dos que o destruíram”, escreveu Cheuiche.

      Fonte: Folha de São Paulo

       

      Compartilhar

      Deixe um comentário

      O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

      Next Post

      Eliane Potiguara: "O agronegócio é um projeto para destruir e entrar nas áreas indígenas"

      qui abr 14 , 2022
      Escritora nascida em solo carioca tem raízes paraibanas e é referência na garantia dos Direitos dos Povos Indígenas Por Beatriz de Alcântara (A UNIÃO) Eliane Lima dos Santos, de 71 anos, é comumente conhecida como Eliane Potiguara. Professora, formada em Letras e Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro […]

      Você pode gostar: