Texto: site Capes
O trabalho de Rafael Xucuru-Kariri (Carlos Rafael da Silva) venceu a edição de 2024 do Prêmio CAPES de Tese na área de Sociologia. Doutor pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), o pesquisador aborda as concepçõcccccccccccccccccces dos povos indígenas acerca de si e de seu lugar político no mundo, a partir da leitura das cartas públicas que escreveram entre 1972 e 2022 endereçadas ao Brasil. Ele analisou uma amostra da documentação indígena neste período, mapeando quem escreve, para quem são destinadas, os assuntos e o contexto de escrita das correspondências públicas indígenas. A tese tem como título “Retomar o Brasil: um estudo das cartas escritas pelos povos indígenas nos últimos 50 anos”.
Fale da sua trajetória acadêmica, da graduação ao doutorado.
Faço parte de uma trajetória comum entre estudantes universitários indígenas. Saí ainda jovem da morada de meu povo para frequentar a Universidade Federal da Bahia (UFBA), na cidade de Salvador. Minha graduação foi em Ciências Sociais, influenciado pela família e pela convivência precoce com antropólogas que atuavam nas aldeias da minha infância. A alegria e as expectativas eram grandes, mas também conviviam com o medo do novo e as privações materiais de um indígena oriundo de família pobre. Encontrei na UFBA as paixões da minha vida: a leitura e o estudo sobre e para os povos indígenas. Ainda na graduação, estudei a implementação da política educacional para povos indígenas, temática que me acompanhou no mestrado. No doutorado, aprofundei a pesquisa que realizava sobre as cartas que os povos indígenas escreviam para o Brasil. Nesses anos de formação, pude conciliar, com rigor e muito afeto, a militância política, a pesquisa engajada e o gosto pela leitura e pelo estudo. Não teria chegado até aqui sem as pessoas, os professores e amigos que tanto impactaram minha vida, sem o movimento indígena e sem as políticas públicas educacionais presentes desde a graduação até a conclusão do doutorado.
Sobre o que é a sua pesquisa? Explique o conteúdo da sua tese.
Trata das concepções dos povos indígenas acerca de si e de seu lugar político no mundo, a partir da leitura das cartas públicas que escreveram nos últimos 50 anos, entre 1972 e 2022, endereçadas ao Brasil. Analisei na tese uma amostra da documentação indígena neste período, mapeando quem escreveu, para quem foram destinadas, os assuntos e o contexto de escrita das correspondências públicas indígenas. Ao estudar o que há de comum, mas também as diferenças nas reflexões dos Yanomami, Munduruku, Pataxó e mais de 200 povos sobre sua relação com outros grupos e com o Brasil, reconstruí a história recente do País na perspectiva indígena. No período da Ditadura, os povos refletiam sobre conceitos de democracia, liberdade e tutela. Desse modo, discuti como a justiça torna o tema recorrente na década de 1990. No entanto, ao final da mesma década, é a ideia de retomada – das terras, das línguas e da história – que passa a ser a temática principal nas cartas. Os anos 2000 foram marcados pela temática da violência, das políticas públicas e da participação na comunidade política brasileira. O colonialismo predominava na reflexão dos anos 2010, dando lugar à política de morte dos anos mais recentes. A retomada dessa concepção filosófica dos povos indígenas sobre o tempo e o fazer política, trata justamente das práticas indígenas, que reaparecem no tempo, retornando e sendo ressignificadas em outros contextos históricos. Por meio das cartas, os povos indígenas buscam retomar o Brasil, escrevendo sobre os diferentes significados de viver e morrer sendo indígena neste País.
O que vale destacar de mais relevante na sua pesquisa?
Primeiro, as concepções políticas dos povos sobre justiça e retomada. Os povos indígenas refletem sobre a justiça não somente por suas características legais e morais, mas também a partir da história. Nós caracterizamos o direito às nossas terras por meio das ideias de ancestralidade, legalidade e da história de nossa relação com o Brasil. Dessa forma, nossa concepção de justiça contrapõe-se a teorias sobre o que é o justo a se fazer nas sociedades contemporâneas, pois discutimos direitos que demandam reparações históricas. Povos indígenas, mas também negros, mulheres e outros coletivos, indagam a capacidade das instituições democráticas de promoverem a justiça diante da influência de seu passado colonial. Em segundo lugar, destaco o valor de uma pesquisa feita a partir do arquivo virtual das cartas escritas pelos povos indígenas. Isso demonstra a importância dessa documentação, bem como a construção coletiva da pesquisa científica, desenvolvida no contexto de um projeto maior e envolvendo povos e coletivos indígenas de todo o País.
De que forma a sua pesquisa pode contribuir para a sociedade?
Um dos mitos amplamente difundidos na sociedade brasileira é o da ausência da escrita e da participação dos povos indígenas na construção passada e presente do Brasil. A tese, que faz parte de uma pesquisa maior, intitulada As cartas dos Povos Indígenas ao Brasil, contribui para desconstruir essa mentira. Os Povos indígenas escreveram e escrevem – e muito! Das cartas do século XVII às correspondências enviadas em 2024, há toda uma documentação indígena que o Brasil precisa conhecer e discutir. Essas cartas são fontes para pensarmos a nossa formação histórica, mas também o lugar dos povos indígenas no Brasil atual e o próprio País que estamos construindo. Reunir este material é importante para professores e professoras nas escolas públicas, que podem tratar da sociedade brasileira a partir das perspectivas dos povos indígenas.
Qual a importância para você de sua tese ter sido escolhida a melhor na área?
De fundamental importância. É o reconhecimento público para um projeto coletivo. Nunca tivemos dúvida sobre a relevância desta pesquisa como manifesto político e como contribuição teórica para diferentes campos do saber, como a literatura, a história e a sociologia. O reconhecimento da CAPES reforça essa certeza e amplia nossas elaborações para pessoas que podem discutir e pensar o Brasil a partir da reflexão indígena. Também acredito que se trata de um reconhecimento da potência das Universidades públicas nas regiões norte e nordeste. Atingir determinado nível de excelência, apesar das desigualdades profundas que enfrentamos no campo educacional e econômico, diz da competência das pessoas que fazem a UFBA, mas também da necessidade de reconhecermos o trabalho dos pesquisadores e das pesquisadoras dessas regiões, inclusive dos pesquisadores indígenas, promovendo a diminuição da desigualdade que continua a impactar nosso trabalho e nossas vidas.
De que forma a bolsa da CAPES contribui para sua formação?
Fui bolsista da CAPES durante a graduação, por meio do Projeto Observatório da Educação Escolar Indígena – Núcleo Yby Yara. Minha formação acadêmica e política é coletiva, feita com pessoas e instituições que a partilharam até a conclusão desta tese. Fundações, bolsas, projetos e programas ofertaram ao longo da minha formação os recursos materiais sem os quais não seria possível realizar a pesquisa ou mesmo me manter financeiramente na Universidade