Pioneiro no Brasil, curso de língua tupi da USP completa 90 anos

Texto: Maria Trombini/ Arte: Simone Gomes – Jornal da USP

Em 14 de março de 1935, o professor Plínio Ayrosa lecionou a primeira aula do curso de língua tupi na USP. Oferecida na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, a disciplina foi a primeira dentro de uma universidade brasileira voltada ao estudo sistemático de uma língua indígena. Passados 90 anos, o curso sofreu diversas mudanças ao longo do tempo, mas segue ativo na grade de disciplinas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

“O estudo científico das línguas indígenas no Brasil começou só no século 20. Antes disso, eram línguas faladas, mas não sistematizadas academicamente. A USP foi a primeira a dar esse passo”, afirma o professor Eduardo Navarro. Atual docente da disciplina na FFLCH, ele guarda até hoje o caderno com as anotações da primeira aula de Plínio Ayrosa. “É um documento precioso, com registros do início dessa história”, diz.

A criação do curso de tupi esteve diretamente ligada ao contexto político da década de 1930. Após a derrota de São Paulo na Revolução Constitucionalista de 1932, as elites paulistas buscaram contornar a consequente perda de influência política e econômica por meio da promoção de iniciativas culturais e acadêmicas. Entre elas, a fundação da USP, em 1934.

Ayrosa, que era engenheiro, assumiu a disciplina a convite do então reitor da Universidade, Reinaldo Porchat. A aula inaugural ocorreu dentro do curso de Etnografia Brasileira. “Foi uma resposta simbólica. A USP nasce como um desagravo à derrota de 1932. E o curso de tupi entra nesse projeto, com a intenção de estudar uma língua das raízes da nacionalidade”, conta o atual titular da disciplina.

Nomes, lugares e histórias

Navarro define o tupi ensinado no curso como uma língua indígena clássica das Américas. “O tupi antigo, ou tupi da costa, é uma língua indígena clássica do Brasil. Apesar de ter deixado de ser falado no século 18, é a língua indígena de maior impacto na formação sócio-histórica e cultural do Brasil”, explica.

Por não possuir mais falantes nativos, o tupi é considerado uma língua morta. Entretanto, Navarro destaca que a língua ainda está viva em diversos aspectos da história e da cultura brasileiras. Palavras de origem tupi dão nome a pessoas, lugares, animais e alimentos.

“Todo mundo usa e nem sempre sabe a origem. Por exemplo, ‘ficar com nhenhenhém’. Nheeng é o verbo ‘falar’, em tupi. ‘Não me cutuque’. Kutuk é furar ou espetar. Paçoca. Pa’soka é uma coisa amassada, esmigalhada. Pipoca. Pok é estourar. Pira é pele. Então, pipoca é a pele estourada do milho. Itororó, como na música, vem de y’tororoma. Y é água e tororoma é jorro. Daí também veio a expressão ‘cair um toró’”, cita o professor.

A presença do tupi se espalha também em regiões onde os povos tupis nunca viveram. Isso porque, à medida que a colonização avançava para o interior, a língua deixou de ser apenas falada pelos indígenas da costa e passou a se tornar uma língua geral. “Era uma língua falada por todos os membros do sistema colonial: indígenas, portugueses, africanos e seus descendentes. Foi usada para batizar cidades como Piracicaba, Sorocaba e Uberaba, muitas vezes por bandeirantes ou colonos, e não por povos originários”, explica Navarro.

Na literatura, a influência também é profunda. Desde os primeiros séculos, a literatura brasileira se constitui com textos em português e em tupi. É o caso do teatro e da poesia do Padre José de Anchieta, e de outros jesuítas dos séculos 16 e 17.

O tupi nos debates contemporâneos

Apesar do pioneirismo do curso da USP, com o passar dos anos, o ensino de tupi foi perdendo força. Durante décadas, o estudo da língua se restringiu à toponímia, e os professores misturavam conceitos do tupi com elementos de outras línguas indígenas. Foi só em 1993, com a chegada de Navarro, que o curso foi retomado com abordagem mais aprofundada e voltada para a linguagem original.

Atualmente, o tupi tem ganhado novo espaço no debate contemporâneo. Para Navarro, isso se deve não apenas à sua importância histórica, mas também ao contexto atual de crise ambiental e perda de diversidade cultural. “Estamos vivendo uma grande crise ecológica. E, nesse cenário, os povos indígenas passam a ocupar um lugar simbólico central como guardiões da natureza”, afirma.

O professor defende que o tupi seja ensinado nas escolas como disciplina optativa, especialmente em regiões com forte presença indígena, como a Paraíba — onde há mais de 10 mil potiguaras. “Estamos lutando pela criação de uma cadeira de tupi antigo na Universidade Federal da Paraíba. E acredito que não faltaria interesse”, diz. “Esses temas tocam o coração de muitos jovens, que querem se reconectar com essa herança.”

A discussão também se insere em um movimento global de proteção às línguas originárias. A Unesco declarou a década de 2022 a 2032 como a Década Internacional das Línguas Indígenas. Nesse sentido, o professor da FFLCH pretende celebrar os 90 anos do curso de tupi da USP organizando um seminário internacional sobre línguas indígenas clássicas das Américas. O evento ainda não tem data para acontecer, mas a ideia é reunir representantes de outros países que também têm línguas indígenas clássicas que foram fundamentais na formação nacional. É o caso do guarani, no Paraguai, ainda falado por mais de 5 milhões de pessoas; do quéchua, na Bolívia e no Peru, que remonta a época do Império Inca; e do náhuatl, no México.

“Preservar essas línguas é preservar a diversidade cultural da humanidade, da mesma forma que lutamos para preservar a biodiversidade”, conclui Navarro.

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Rodrigo Martins

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