Sob ameaça, número recorde de indígenas disputa as eleições

  • Um número recorde de 186 candidatos indígenas estão concorrendo às eleições no próximo dia 2, 40% a mais que em 2018.
  • Para candidatos e ativistas, esse fenômeno representa uma reação a ataques crescentes contra os direitos, terras e culturas indígenas durante o governo do Presidente Bolsonaro.
  • Atualmente, há apenas uma representante indígena entre 594 parlamentares no Congresso Nacional, onde a maioria tem sistematicamente apoiado projetos de lei que põem em risco os direitos indígenas e o meio ambiente.
  • Até hoje, somente dois indígenas foram eleitos para o Congresso. Mas a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) espera aumentar essa representatividade por meio de uma campanha coordenada de apoio a candidaturas indígenas.

Há 35 anos, Ailton Krenak pintava seu rosto com a tintura negra do jenipapo para denunciar a violência contra os povos indígenas em um dos mais importantes espaços de poder do país: o palanque da Câmara dos Deputados.

“O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos 8 milhões de quilômetros quadrados do Brasil. Os senhores são testemunhas disso”, disse o líder indígena Ailton Krenak representando o movimento indígena durante a Assembleia Constituinte de 1987.

No ano seguinte, uma nova Constituição foi promulgada, estabelecendo direitos fundamentais para os povos indígenas pela primeira vez na história do país. No entanto, 34 anos depois, esses mesmos direitos, segundo ativistas, estão sob ataque como nunca antes. O motivo, eles dizem, tem relação com a retórica anti-indigenista promovida pelo governo do Presidente Jair Bolsonaro desde 2019, desencadeando violência generalizada contra as culturas, terras e vidas indígenas.

    Imagem:Em 1987, o líder indígena Ailton Krenak pintou seu rosto inteiro com tintura negra de jenipapo ao fazer um protesto contra a violência contra os povos indígenas na Assembleia Constituinte. Imagem cortesia da Câmara dos Deputados.

    “Esse governo tem a decisão política de não demarcar Terra Indígena, e ainda rever territórios já demarcados”, disse Sônia Guajajara, influente ativista indígena. “Quando Bolsonaro negou a demarcação de Terras Indígenas, ele chamou pra briga. E é por isso que a gente decidiu fazer o enfrentamento direto, por meio da disputa eleitoral”.

    Internacionalmente reconhecida por sua luta, Sônia Guajajara é candidata a deputada federal. Representando o estado de São Paulo e o povo Guajajara, ela concorre a uma vaga na Câmara dos Deputados nas eleições do dia 2.

    Um número recorde de 186 candidatos que se autodeclaram indígenas estão concorrendo a cargos politicos nas eleiçõs de domingo, número 40% mais alto que nas eleições de 2018. Desse total, 63 candidatos disputam um assento na Câmara dos Deputados ou Senado Federal – onde, eles afirmam, lutarão para proteger seus direitos arduamente conquistados.

    “Considerando que só temos uma representante indígena, é urgente aumentar essa voz indígena no Congresso Nacional”, disse Sônia Guajajara, referindo-se à Deputada Federal Joênia Wapichana, que, em 2018, se tornou a primeira mulher indígena eleita no Congresso Nacional.

    “Nós precisamos muito dessa representação, para poder levar essa voz pela terra. Essa voz pela água. Essa voz pela biodiversidade pra essas instâncias da política institucional”, disse Sônia. Ela conversou com a Mongabay após uma manhã de campanha política nas ruas de São Paulo, panfletando e dialogando com potenciais eleitores. Essa, no entanto, não é sua primeira vez como candidata política: em 2018, ela concorreu à vice-presidência.

     

      Imagem: Ativista indígena renomada internacionalmente e agora candidata ao Congresso, Sônia Guajajara disse que espera ver pelo menos três representantes indígenas no Congresso no próximo ano. Imagem cortesia de Leo Otero.

      Aos 21 anos, Junior Manchineri é o candidato indígena mais jovem das próximas eleições. Ele se considera um ativista desde os 5, quando seu pais – quem ele descreve como “militantes históricos” do PT no estado do Acre – o introduziram ao movimento indígena.

      “Eles me ensinaram desde cedo que eu precisava me envolver com o contexto político, pois é dentro da política que a gente consegue moldar tudo que acontece conosco”, disse Junior Manchineri, que, representando o povo Manchineri, concorre como deputado estadual na Assembleia Legislativa do Acre. “E aí, comecei a pensar sobre a importância de a gente ter uma candidatura indígena que efetivamente pudesse chegar à Assembleia Legislativa do nosso estado”.

      Ele diz também que se inspirou no discurso de Sônia Guajajara, encorajando povos indígenas a ocupar espaços de poder, e em seu avô, que, além de ter exercido papel fundamental no processo de demarcação da Terra Indígena Manchineri, lutou contra políticas anti-indigenistas nos anos 1970 e 1980, e foi um dos líderes indígenas a participar ativamente da Constituinte de 1987.

      “Essa candidatura vai percorrer toda essa história. A gente vem construindo essa narrativa, que não começou comigo. Ela é o resultado dessas várias lutas, que começam ali com o meu avô, passa pro meu pai, e meu pai passa pros seus filhos”.

       

        Imagem: Seguindo os passos de seu avô, Junior Manchineri, que se descreve como um ativista desde os 5 anos de idade, é o candidato indígena mais jovem nas eleições de 2022. Imagem cortesia da Rede de Jovens Comunicadores Indígenas da Coiab.

        ‘Um grande retrocesso’

        A Assembleia Constituinte foi um marco para os direitos indígenas no Brasil. Ela encerrou anos de uma abordagem jurídica que, até 1987, estabelecia que os povos indígenas eventualmente se integrariam à sociedade, “assimilando”, em última instância, a cultura não-indígena.

        “Era nesses termos que a Constituição anterior falava: promover a integração forçada”, Márcio Santilli, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA), organização não-governamental que defende os direitos de povos tradicionais e indígenas, disse à Mongabay em uma chamada de vídeo. “Essas constituições falavam em fazer com que eles deixassem de ser índios. A partir do momento que deixassem de ser índios, esses direitos também deixariam de existir”.

        Após a Assembleia Constituinte, comentou Santilli, “povos indígenas deixavam de ser sujeitos provisórios e passavam a ter o direito de viver como sempre viveram, de ter suas próprias culturas, suas línguas, a sua própria forma de gerir o seu território para sempre. Os povos indígenas passaram a ser atores permanentes dentro da sociedade brasileira”.

        Segundo Santilli – que ajudou a mediar o debate eentre grupos indígenas e o Congresso durante a Constituinte – com a Constituição de 1988 em vigor, o governo também estabeleceu políticas públicas para os povos indígenas, incluindo um serviço do Ministério da Saúde dedicado exclusivamente às comunidades indígenas.

        Mas, para os ativistas, todas essas conquistas passaram por graves retrocessos sob a administração de Bolsonaro.

        “Nós vivenciamos, nesse atual contexto político, um grande retrocesso”, disse Rosani Fernandes, pesquisadora indígena da Universidade Federal do Pará, à Mongabay em uma chamada de vídeo. Integrante do povo Kaingáng do sul do país, Fernandes apontou para o fechamento de órgãos dedicados a políticas indigenistas, cortes orçamentários para políticas de promoção dos direitos indígenas, “e o acirramento dos ataques de ódio que estamos enfrentando todos os dias”.

        Sônia Guajajara afirma que, ao mesmo tempo em que ataques contra direitos indígenas tornaram-se mais frequentes desde o começo de um governo neoliberal, sob a presidência de Michel Temer (2016-2018), nenhum outro governo assumiu uma agenda tão anti-indigenista quanto o de Jair Bolsonaro.

        O governo federal não respondeu ao pedido resposta enviado pela Mongabay.

         

          Imagem: Incêndio florestal em Rio Branco, Acre, em setembro de 2022. Sob o governo de Jair Bolsonaro, o Brasil registrou altos índices de desmatamento, inclusive em Terras Indígenas. Foto cortesiade Sérgio Vale/Amazônia Rea

            Imagem: O projeto da Campanha Indígena começou no acampamento Terra Livre, um evento de mobilização pela defesa dos direitos indígenas que ocorre em Brasília todos os anos. O evento de 2022 reuniu mais de 7.000 povos indígenas de todo o Brasil. Imagem cortesia de Marcelo Camargo/Agência Brasil.

            Uma única indígena no Congresso

            O número recorde de candidaturas indígenas para essas eleições é, em parte, uma resposta concreta à violência praticada contra povos indígenas durante a administração Bolsonaro, afirmam os ativistas. Resulta, também, da mobilização do movimento indígena brasileiro para, segundo eles, inserir sua agenda nos espaços de poder.

            A participação de povos indígenas na política institucional do país tem crescido desde 1988, com um aumento expressivo nas eleições municipais de 2020, quando, segundo Santilli, o número de candidatos indígenas concorrendo a prefeito, vice-prefeito, e vereador aumentou em torno de 20% em relação às eleições municipais anteriores.

            Mas as eleições gerais deste ano, de acordo com Fernandes, representam uma mudança paradigmática “dos movimentos indígenas na percepção desses espaços políticos como estratégicos”. Ela destaca que a maioria dos candidatos são do norte e nordeste, onde as Terras Indígenas têm sido crescentemente invadidas por garimpeiros, madeireiros e pescadores ilegais.

            Para Dinamam Tuxá, ativista indígena e coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o aumento de candidaturas indígenas é resultado de anos de mobilização. No âmbito municipal, indígenas têm ocupado cargos políticos desde 1969, quando Manoel dos Santos, do povo Karipuna, tornou-se o primeiro vereador indígena do Brasil de Oiapoque, no Amapá. O Congresso Nacional, porém, só teve dois deputados indígenas em toda sua história.

              Imagem:Indígenas na Assembleia Constituinte de 1987, em Brasília. Imagem cortesia da Câmara dos Deputados.

               

              primeiro foi Mario Juruna, do povo Xavante, que atuou na Câmara dos Deputados pelo estado do Rio de Janeiro entre 1982 e 1986. Juruna foi uma voz proeminente pela demarcação da Terras Indígenas quando a pauta ainda não era nem mesmo um direito constitucional. Nos anos 70, ele ficou famoso por caminhar pela sede da Fundação Nacional do Índio (Funai), em Brasília, sempre carregando um gravador “para registrar tudo que o homem branco diz” e provar que as autoridades quase sempre não cumpriam sua palavra.

              Embora Joênia Wapichana seja a única indígena entre 594 membros no Congresso atualmente, sua presença mostra a importância dessa representatividade indígena no Congresso, argumenta Santilli. Ele lembrou que, quando Bolsonaro tentou transferir a gestão da Funai para o Ministério da Agricultura, o projeto foi derrubado no Congresso, com a atuação crucial de Wapichana.

              “E ela foi uma pessoa importante em liderar esse movimento e não permitir essa aberração”, colocou Santilli. “A deputada Joênia foi [também] importante para aprovar uma lei que fizesse com que o governo estabelecesse uma programação específica de atenção à saúde dos povos indígenas durante a pandemia”.

              Para aumentar a representatividade indígena no Congresso, a Apib organizou a primeira campanha coordenada para eleger múltiplas candidaturas indígenas nas próximas eleições. A “Campanha Indígena”, como é chamada, tem por objetivo prover apoio legal e de marketing político para candidatos indígenas de 31 grupos étnicos distintos, a maioria proveniente da Amazônia.

              “A organização [da] Apib [fez] um trabalho junto com as organizações regionais … de formação política e conscientização política, mostrando a importância da gente estar ocupando esses cargos e essas funções de forma estratégica”, afirmou Dinamam Tuxá, da Apib.

              “[Estamos apoiando] as candidaturas que estão alinhadas com o movimento [indígena]”, disse Sônia Guajajara, uma das candidatas apoiadas pela Campanha Indígena. “Candidaturas em partidos progressistas e candidaturas que têm viabilidade eleitoral e maior poder de articulação”.

               

                Manifestação indígena “Ato Pela Terra” em Brasília, em março de 2022. Imagem cortesia de Oliver Kornblihtt / Mídia NINJA(CC BY-NC 2.0).

                ‘Ninguém vai arredar o pé’

                Segundo Sônia Guajajara, conquistar o apoio de seus próprios partidos politicos também não tem sido tarefa fácil para as candidaturas indígenas.

                “Os partidos nem sempre dão esse apoio que a gente precisa. Nem político, nem financeiro”, ela declarou. Segundo ela, as estruturas são muito desiguais na comparação com “quem já tem ou para quem investe muito recurso, ou que[m] fica apadrinhando e reproduzindo a política assistencialista”,

                Para ajudar a viabilizar sua própria candidatura, Sônia Guajajara disse que abriu uma campanha de financiamento coletivo. Para essas eleições, ela espera que brasileiros elejam pelo menos três candidatos indígenas no Congresso – Joênia Wapichana também concorre ao seu segundo mandato como deputada federal.

                Uma vez eleitos, indígenas progressistas enfrentarão grandes desafios, sobretudo na Câmara dos Deputados. Uma análise de projetos de lei e histórico de votações realizada pelo Repórter Brasil revelou que 68% dos deputados apresentam um histórico de apoio a projetos de lei considerados nocivos aos meio-ambiente, aos direitos indígenas e a trabalhadores rurais.

                Dentre os projetos de lei atualmente em análise na Câmara estão uma proposta de legalização da atividade mineradora dentro de Terras Indígenas (o que foi banido em 1988); o enfraquecimento das agências de proteção ambiental; e a legitimização da grilagem e da ocupação ilegal de terras públicas. Pela ameaça que esses outros projetos de lei representam ao meio ambiente e aos direitos indígenas, foram chamados por ativistas de “Pacote da Destruição”.

                “Se a gente não vai conseguir ter maioria pra aprovar nossos projetos, nós vamos, pelo menos, atrapalhar”, disse Sônia Guajajara. “Se a gente não vai ganhar, mas pelo menos também não podemos perder mais. Ninguém vai arredar o pé”.

                Dinamam Tuxá concorda que, uma vez no poder, negociar não será uma opção para os congressistas indígenas.

                “Vamos fazer esse enfrentamento contra esse desmonte que foi realizado nos últimos quatro anos”, ele disse. “O Congresso Nacional vai ser um espaço de reconstrução e de cobrança de cumprimento do nosso texto constitucional”.

                  Imagem: Um recorde de 186 candidatos que se autodeclaram indígenas estão concorrendo a cargos públicos nas próximas eleições. Imagem cortesia da Campanha Indígena.

                  Imagem de destaque: Grupos indígenas participam do Acampamento Terra Livre (ATL) na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Imagem cortesia de Valter Campanato/Agência Brasil.

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                  Rodrigo Martins

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