Região onde repórter e servidor desapareceram sofre violência crescente e foi abandonada pelo governo, diz ex-chefe da Funai

Texto: João Fellet

    Imagem:Grupo da etnia korubo contatado em 2014 (FUNAI/ reproduzido pelo site BBC)

    O desaparecimento do servidor da Funai Bruno Araújo Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips enquanto viajavam pelo Vale do Javari, no Amazonas, “expõe o total abandono que servidores e indígenas” experimentam na região, diz à BBC o ex-servidor da Funai Antenor Vaz, que já foi o chefe do órgão no Vale do Javari.

    Pereira e Phillips desapareceram quando se deslocavam de barco pelo rio Itaquaí após uma visita aos limites da Terra Indígena Vale do Javari.

    O território, segundo Vaz, tem sofrido com invasões crescentes de caçadores, pescadores, madeireiros e garimpeiros.

    Ultimamente, diz o ex-servidor da Funai, também tem crescido a ação de narcotraficantes na terra indígena, que fica na fronteira com o Peru e a Colômbia.

    “O tráfico de cocaína, especialmente vinda do lado peruano, é muito grande”, diz Vaz, hoje consultor internacional de políticas para povos indígenas isolados.

    Pereira estava de licença da Funai após ser exonerado da chefia da Coordenação geral de Índios Isolados e Recém Contatados, em 2019.

    Ele foi retirado do cargo após coordenar uma operação que expulsou centenas de garimpeiros da Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Na ocasião, agentes destruíram equipamentos dos garimpeiros e apreenderam um helicóptero.

      Imagem:Mapa da região do Vale do Javari (Fonte: Unijava/Reprodução site BBC)

      Segundo Vaz, após sair de licença, Pereira vinha trabalhando como assessor da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava), principal organização do território indígena.

      Vaz diz que o servidor acompanhava Phillips na viagem para ajudá-lo na realização de uma reportagem sobre as invasões à Terra Indígena Vale do Javari.

      “(Pereira) É indiscutivelmente uma pessoa aliada, comprometida com a defesa dos direitos dos povos indígenas”, diz o ex-servidor da Funai.

      Após o desaparecimento da dupla, a própria Funai afirmou que Pereira “não estava na região em missão institucional, dado que se encontra de licença para tratar de interesses particulares”.

        Agentes de saúde examinam índios korubo contatados em 2015. Fonte: FUNAI/ Reproduzido pelo site BBC)

        Colegas afirmam que Pereira, um dos mais destacados indigenistas de sua geração, pediu licença da Funai para que pudesse continuar agindo em prol de indígenas num momento em que a fundação restringia drasticamente sua atuação em defesa das populações.

        No governo Jair Bolsonaro, a Funai teve grandes cortes no orçamento e passou a endossar propostas do presidente que sofrem grande oposição entre indígenas, como a liberação do garimpo nesses territórios e a agricultura mecanizada em larga escala.

        Segundo Antenor Vaz, a “omissão da Funai” no Vale do Javari nos últimos anos fez com que os indígenas assumissem a defesa do território e se expusessem ao risco de confrontos com invasores.

        “Não tem qualquer cobertura da instituição”, afirma.

        Vaz cobrou as autoridades federais a iniciar buscas na região o quanto antes e a convidar indígenas para integrá-las, pois esses são os maiores conhecedores dos rios locais.

        O ex-servidor diz que é pouco provável que o barco da dupla tenha naufragado. Isso porque, segundo ele, havia na embarcação vários galões vazios, que teriam flutuado com o naufrágio e, ao descer o rio, seriam visualizados pelas comunidades vizinhas.

        A BBC expôs as críticas de Vaz à Funai.

        Em resposta, em nota na qual não cita suas operações no Vale do Javari, a Funai afirma que seu investimento em ações de proteção a indígenas isolados e de recente contato chegou a R$ 51,4 milhões entre 2019 e 2021. “Os valores superam em 335% o total investido entre os anos de 2016 e 2018”, diz a Funai, que afirma ter usado os recursos “principalmente em ações de fiscalização territorial e combate à covid-19 em áreas habitadas por essas populações”.

        “A Funai promove ações permanentes de vigilância, fiscalização e monitoramento de áreas onde vivem indígenas isolados e de recente contato por meio de suas 11 Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE), descentralizadas em 29 Bases de Proteção Etnoambiental (Bapes), que são estruturas localizadas estrategicamente em Terras Indígenas da região da Amazônia Legal”, diz o órgão.

        “As Bapes funcionam em escala ininterrupta e são responsáveis por diversos trabalhos que ocorrem de forma contínua, como controle de ingresso nas áreas indígenas; ações de localização e monitoramento de grupos isolados e de recente contato; e atividades de fiscalização e vigilância territorial junto a órgãos ambientais e de segurança pública competentes”, prossegue a nota da Funai.

        Crescimento da violência

        A Terra Indígena Vale do Javari tem vivenciado um crescimento da violência desde 2019.

        Em 2019, o colaborador da Funai Maxciel dos Santos Pereira foi assassinado em Tabatinga após participar de uma operação que apreendeu grande quantidade de caça e pesca ilegal no território.

        Também naquele ano, uma base da Funai que controla um dos acessos à terra indígena foi alvo de vários ataques a tiros atribuídos a caçadores e pescadores ilegais.

        Na época, uma reportagem da BBC relatou que servidores e colaboradores haviam ameaçado parar de trabalhar por conta da falta de segurança.

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        Rodrigo Martins

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