Texto: Daua Puri (site Rádio Yandê)
Foto: Acervo pessoal Facebook/ Vini Chapada
Quando conheci Nankupé Tupinambá Fulkaxó na Universidade de São Paulo (USP), foi um grande encontro. Já nas primeiras palavras, me pergunta “como você se define?”. Respondi que sou um des-construtor. Meu pai, Sebastião, era construtor. Pensava que eu seria engenheiro, mas desde criança, quando procurava informações sobre os indígenas e negros, eu perguntava para meu tio e ele respondia: “Aqui não se fala nisso, esquece”!
Vim com a família para o Rio de Janeiro, saindo de uma cidade no interior, chamada Paraíba do Sul. Quando criança comecei a trabalhar como jornaleiro nas esquinas do bairro Jardim América. Tive contato com os principais jornais da grande imprensa de 1960 e gostava de ler as manchetes. Banhada pelo rio, Paraíba do Sul expõe em sua bandeira, o brasão com a imagem de um indígena. Há uma placa na praça do Jardim Velho que diz “Os Puri, os Verdadeiros Donos da Nossa Terra” no seu aniversário de 191 anos de fundação.
Nas minhas pesquisas, busquei compreender o porquê da invisibilidade e da negação das origens de nossos ancestrais. Estudei Técnico de Jornalismo no curso Austregésilo de Atayde na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e Locução, tendo atuado nas principais emissoras do Rio de Janeiro. Divulgava as músicas do campo, do cerrado e sertões, por uma lacuna na mídia carioca. Aquilo era meu sonho.
Observava a negação das nossas raízes e de nossos sotaques pindorâmicos em nossa cidade. Comecei a compreender que essas lacunas históricas foram propositais para a implantação do eurocentrismo. Descobrir os meios e os mecanismos usados para esse apagamento foi importante para fazer meu caminho de volta a origem Puri de meus ancestrais.
Quando li o trabalho de Nankupé, intitulado “Entre Cartas , Crônicas e Textos Jornalísticos: o que fizemos com o nosso povo?“, fiquei feliz, pois traz um compêndio reflexivo para o jornalismo de verdade, aquele conteúdo que nos faltava. Quando ele diz sobre fazer crítica ao jornalismo literário indígena, parei para respirar de emoção, entendendo que se preencheria essa lacuna para a imprensa nacional. Poder falar sobre os indígenas, trazendo a pena do urucum e do jenipapo para pintar a nossa história com as mãos dos próprios, resgatando as identidades negadas de nossos ancestrais como protagonistas de suas vidas, me faz reviver o sonho do Puri livre, corredor dos campos da Mata Atlântica.
Nankupé traz em sua pesquisa, o discurso sobre os povos indígenas brasileiros, ao longo da história, desde a chegada do europeu à costa de Pindorama até a contemporaneidade. Para tanto, investigou um acervo que reúne mais de cinco mil documentos, livros, revistas, periódicos e arquivos digitais. O pensamento que norteou o estudo, e durante todo trabalho de pesquisa, o próprio leitor poderá constatar: desde a época do Brasil Colônia, os discursos produzidos em documentos históricos, textos oficiais e jornalísticos deram origem e, mais tarde, contribuíram para a manutenção de uma narrativa etnocêntrica, egocêntrica e eurocêntrica, que se perpetua no imaginário social e deturpa o povo indígena, visto de uma forma romantizada e, posteriormente, caracterizado como “selvagem”, “indolente” e “preguiçoso”. Embora a riqueza de toda a obra, vou refletir aqui sobre o quarto capítulo da obra e alguns de seus subcapítulos.
“Povos indígenas na Imprensa – Raízes de um Discurso Colonizador”
O autor inicia com a abordagem do nascimento da imprensa com ilustração de prensa tipográfica, no século XV. Depois, várias ilustrações de diversos periódicos daquela época nas páginas seguintes. Dentre elas, o primeiro periódico produzido na Bahia e a primeira Revista Brasileira de variedades em 1812. Chocante será quando você ler a imagem da revista O Cruzeiro lançada em 1928, com a caricatura de uma criança nua com uma bandeira no ombro, um revólver na cintura e um canhão (Fulkaxó, 2019, p.74).
“A Imprensa e os Índios: como se Escreveu e Como se Escreve a História”
O comportamento da mídia brasileira e o seu tipo de construção textual utilizam termos completamente em desacordo com as técnicas de apuração jornalística. Parte significativa desses veículos constituem suas peças dando continuidade e alimentando o estilo etnocêntrico e preconceituoso originado no período colonial, o que contribui de um imaginário criado desde aquela época. São termos ou expressões como, “índios invadem”, “índios matam”, “índios bloqueiam”, corriqueiramente utilizados no cotidiano dos jornais (Fulkaxó, 2019, p. 91). Por isso, torna-se importante a forma como a imprensa apura, interpreta e divulga as notícias sobre os conflitos que envolvem os indígenas, quais os atores sociais que atuam nesses conflitos, quais os interesses envolvidos e como, a partir dessas respostas, os jornalistas constroem seus juízos de valor sobre esses povos. Ao final dessas reflexões, esperamos poder apresentar fatores de correção que contribuam para uma abordagem mais responsável e honesta sobre os povos indígenas brasileiros no cenário midiático atual (Fulkaxó, 2019, p. 93).
Para Nankupé, o jornalista, que deveria ser um narrador discreto, apurando as fontes com imparcialidade, isonomia ao construir a notícia tecnicamente, abandona as teorias e práticas profissionais. A “vitimização” é sempre empregada aos não índios, ou seja a favor dos garimpeiros, fazendeiros, ruralistas e empresas do agronegócio.
“O Novo Imaginário no século XX sobre as Comunidades Indígenas”
O autor apresenta um levantamento sobre a missão do sertanista Rondon. No imaginário nacional, o cidadão indígena era visto como selvagem: “índios bravos”, “silvícolas”. A simplicidade e nudez em seu modo de vida causava grande alarde e curiosidade na sociedade branca do governo de Campos Salles. Já a Semana de Arte Moderna de 1922 foi tratada como um marco na tentativa de valorização do índio, do negro e do mestiço brasileiro como elementos integrativos das nossas identidades étnicas.
Ao tratar sobre “Os Massacres de indígenas chegam aos jornais” nos anos de 1960, Nankupé destaca que a imprensa nacional passa a cumprir com a responsabilidade que cabe ao jornalismo sério, imparcial e justo, ao divulgar reportagens e imagens sobre o massacre de índios e a respeito das investigações de corrupção que devastavam o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) (Fulkaxó, 2019, p.109). Na década de 1970, a visibilidade da causa indígena surge através de lideranças indígenas, como Mário Juruna, o indígena Xavante que questionava políticos e indigenistas, sempre com gravador em punho nos encontros com as autoridades. Foi nessa época que também surgiram filmes como “ Uirá” e “ Terra dos Índios”.
Ao alcançar a década de 1990, a ECO 92, no Rio de Janeiro, foi um marco favorável para tornar a luta dos povos indígenas brasileiros visível em âmbito internacional. O evento foi palco de muitas reivindicações realizadas pelos próprios indígenas. Na ocasião, os indígenas produziram e veicularam notícias em imagens em fotos e vídeos. A difusão do conteúdo não ficou restrita às aldeias, suas escolas, universidades e fóruns urbanos. As imagens circularam o mundo, com esclarecimento da opinião pública de suas demandas e propostas políticas, mas também contando sobre a cultura indígena (Fulkaxó, 2019, p.113). A pesquisa ainda inclui a recente regulamentação da profissão de jornalista pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2009, aborda a primeira escola de Jornalismo e tece reflexões sobre os direitos democráticos (Fulkaxó, 2019, p.120).
Por fim, Nankupé ressalta em seu estudo, a importância da imprensa cumprir o seu papel de informar para esclarecer e não para tutelar o povo. A abordagem da comunicação de massa deve contemplar reflexões em torno de teorias que consideram que a informação, para ser ativada como a comunicação, depende do fato de outra consciência ou até mesmo que codifica a mensagem. Assim, deve resgatá-la, ou seja, ao decodificá-la, seja lendo, ouvindo, assistindo, que o receptor possa, ele mesmo, interpretar sua mensagem. (Fulkaxó, 2019, p.125)
Para finalizar…
Investigar, por meio da leitura, a obra de Nankupé, era mais que curiosidade minha. Era uma necessidade premente de contar uma verdade, de contar nossa verdade, de “resgatar” e gritar para todo mundo o quão injustiçado foi nosso povo em detrimento de valores políticos e econômicos, principalmente dos europeus, na busca insana de poder e riquezas que a eles não pertenciam. Contar a história das populações brasileiras, sua luta e resistência contra a violência do colonizador. Por isso, a importância do jornalismo compreendido nessa discussão como participante do processo de construção do imaginário nacional sobre os povos indígenas, suas culturas e costumes. (Fulkaxó, 2019, p.140)
Queridos leitores e leitoras das causas indígenas, saboreiem, se deleitem das linhas escritas dessa pena de Nankupé Tupinambá Fulkaxó, que realiza uma mistura pindorâmica de convergências do sangue bravio dessa gente que luta pelo bem viver, pelo direito de dizer: nós sempre estivemos aqui pra cuidar da mãe terra, da água e do ar que respiramos para a VIDA.
Guaima thamati, thamati! ( ser vivo, vivo) Ho!
*Colunista da Rádio Yandê, Dauá Silva é da etnia Puri, do Rio de Janeiro. Um “contador e caçador de histórias”, Dauá é escritor, poeta e compositor, pesquisador da história e língua da etnia Puri, povo originário na região sudeste. Lançou o primeiro livro bilingue Puri/Português Tempo de Escuta – Alkeh Poteh e Histórias infantis, além de outras publicações. Esse artigo faz parte de sua investigação “Cultura indígena do sudeste, memória e sua guarda – Os Puri e sua Identidade”. Dauá é dinamizador cultural e membro do Movimento Indígena do Rio de Janeiro.