Texto: Gersem Baniwa: Antropólogo e professor associado da Universidade de Brasília (UnB).
Imagem: Marcha pela Retomada Coletiva do Movimento Indígena do Amazonas/Manaus, (FOTO: Gersem Baniwa)
A presença indígena em contextos urbanos não é nova no Brasil. As construções de cidades brasileiras desde o período colonial sempre foram acompanhadas pela presença e participação de povos indígenas, principalmente como mão-de-obra. Essa presença aumentou significativamente nas últimas três décadas, motivada por algumas situações específicas, mas, principalmente, pelo aprofundamento das precariedades de vida nas terras indígenas, que estimulou as famílias a migrarem para cidades em busca de melhores condições de vida e de acesso a políticas públicas básicas, tais como educação, saúde, segurança territorial e subsistência material.
Ocorre que esta população indígena residente em cidades sempre foi invisibilizada pelo Estado e pelo movimento indígena. A invisibilização por parte do Estado esteve e está ligada às idéias coloniais racistas de que o índio é aquele que vive no mato, na floresta ou em áreas remotas, longe da “civilização”. Assim, os que passavam a residir em cidades já não eram considerados indígenas. É muito comum a idéia de que o índio que fala a língua portuguesa, que usa celular, relógio, possui diploma universitário e dirige carro não é mais considerado indígena ou, pelo menos, não é mais considerado índio de “verdade”, “autêntico” ou “original”. Além disso, o Estado se nega a reconhecer os indígenas residentes em centros urbanos para não ter que reconhecer os seus direitos garantidos pela Constituição Federal e, consequentemente, estender as políticas públicas indigenistas para eles, o que significaria a necessidade de mais recursos humanos e financeiros.
Por outro lado, o movimento indígena não tem interesse em dar visibilidade ou pautar as questões dos indígenas que vivem em centros urbanos, influenciado pelas visões colonialistas citadas acima e por não querer compartilhar recursos financeiros e políticas públicas que, em geral, são destinados aos chamados índios aldeados ou índios habitantes em terras indígenas reconhecidas pelo Estado. Os indígenas aldeados também resistem em dividir a atenção da mídia e da opinião pública, ou mesmo alimentam receios de que valorizar a presença indígena nas cidades estimularia a migração das terras indígenas para os centros urbanos. De um modo geral, os indígenas citadinos são percebidos, pelos indígenas aldeados, como concorrentes na atenção do Estado, da mídia e da opinião pública, o que provoca tensões no seio do movimento indígena mais amplo.
Não é meu objetivo aprofundar tais questões, o que exigiria mais pesquisas e investigações, além de um investimento textual de maior fôlego. Aliás, é importante destacar também a carência de estudos e pesquisas sobre a questão. O meu propósito neste texto é indicar a relevância da questão e a necessidade de debates e estudos para um aprofundamento da problemática, de suas perspectivas e possibilidades. Entendo que, cedo ou tarde, essa questão passará a fazer parte das principais agendas do movimento indígena e das políticas indigenistas, forçadas, por razões que trataremos a seguir, pela pressão que essa temática exerce e exercerá nos próximos anos.
O que mais chama atenção quando observamos a presença indígena em centros urbanos é a enorme potência sociocultural e política que isso representa, ainda que seja muito pouco conhecida e altamente subestimada sob diversos pontos de vista. A questão da presença indígena em centros urbanos, longe de ser trivial, tangencial ou de menos importância no plano nacional e do movimento indígena, tende a ser explosiva, prioritária e estratégica do ponto de vista demográfico, político, social, cultural e econômico, tanto para os povos e movimentos indígenas quanto para as políticas indigenistas e o país. Dados oficiais revelam a relevância da presença indígena em contextos urbanos, mas também a inequívoca exclusão, discriminação e racismo praticados contra essa população. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – o IBGE (Agência Brasil, 2021) –, durante o planejamento do Censo de 2022, estimou a população indígena no Brasil, em 2020, em 1.108.970 pessoas[1]. Dados preliminares do Censo 2022 ainda em curso já apontam para uma população indígena de mais de 1.400.000,00.
No entanto, o Subsistema de Saúde Indígena, responsável pelo atendimento à população indígena na atenção básica, trabalha com uma base de dados de pouco mais de 410 mil indígenas. Ou seja, o Ministério da Saúde só reconhece e atende 37% da população indígena brasileira. Isso significa que 63% da população indígena do país não é reconhecida pelo Ministério da Saúde e, consequentemente, não é atendida pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI/ME) por meio dos seus Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DISEI. Isso é inaceitável do ponto de vista de direitos e de políticas públicas indigenistas, já que é um verdadeiro descumprimento e afronta à Constituição Federal, que em nenhum momento faz distinção, discriminação ou diferenciação de direitos ou de cidadania entre indígenas residentes em terras indígenas e indígenas residentes em centros urbanos. Em muitos casos, indígenas que habitam áreas territoriais não reconhecidas e demarcadas resultam da negligência, omissão ou ação deliberada do próprio Estado brasileiro.
A pandemia de Covid-19 desnudou essa absurda realidade de negação de identidades e de direitos às populações indígenas residentes em cidades. Essa exclusão e os descasos dos governos causaram centenas de mortes. Cito, como exemplo, os casos do Parque das Tribos (o primeiro bairro indígena de Manaus) e de outras 53 comunidades indígenas que vivem na mesma cidade, que foram as primeiras afetadas pela Covid-19, e em relação às quais os governos foram extremamente negligentes com a falta de atendimento médico e de assistência. Dentro das comunidades, as ações de prevenção e cuidados partiram das próprias lideranças e dos comunitários para salvar a vida de seus parentes. Quando necessitaram do município de Manaus para a remoção dos parentes infectados, lhes foi negado o direcionamento de ambulância para atendimento das comunidades indígenas. Ao se identificarem como indígenas, os/as atendentes respondiam que: “quem cuida da saúde dos povos indígenas é a SESAI” – e que, diante disso, não teriam como disponibilizar a ambulância do SAMU para a remoção dos indígenas nas comunidades. E, quando procuravam a SESAI e o DISEI, diziam que era para procurar o SUS, o município e o Estado, pois tais órgãos só atendiam indígenas das aldeias (Depoimento de Wanda Witoto, 2021). Essa situação levou a cidade de Manaus a amargar as taxas mais altas de letalidade, entre indígenas[2]. Diante dessa negligência e do racismo institucional do Estado, indígenas morreram vítimas da Covid e foram enterrados como pardos.
Outro aspecto que se destaca entre a população indígena residente em centros urbanos é a sua vivacidade cultural, que impressiona. São comunidades étnicas ou multiétnicas fortemente resilientes e resistentes culturalmente e linguisticamente. Praticam e vivem intensamente suas tradições e línguas de forma dinâmica e sempre criativa, tanto quanto ou até mais que as comunidades aldeadas em terras indígenas, no uso de suas línguas, danças, pinturas corporais, vestimentas, alimentos e modos de vida tradicionais. Tais práticas e vivências culturais estão sempre acompanhadas por processos de resgate e revalorização das tradições ancestrais e por uma permanente atualização e dinamização dessas tradições aos contextos e realidades atuais. Não se trata, portanto, de práticas culturais por demandas turísticas ou performáticas para eventos, que também existem, é verdade, mas muito mais de autoafirmação e autorrealização identitária e existencial em meio a um mundo cada vez mais homogêneo cultural e identitariamente. É muito comum ver em cidades como Manaus crianças e jovens indígenas que praticam pinturas corporais e vestem trajes tradicionais cotidianamente e não apenas em ocasiões de eventos. Há muitos casos de jovens e adultos indígenas que se redescobrem indígenas, com suas etnias e clãs, a partir da convivência com pessoas e famílias indígenas na cidade, como acontece muito entre jovens que saem de suas comunidades originárias para estudar em universidades localizadas em outras regiões do país.
Outro aspecto importante observado entre as populações indígenas residentes em contextos urbanos é a sua potência e capacidade de luta por direitos. Nas últimas décadas, as populações indígenas citadinas iniciaram seus processos de organização e mobilização em prol de seus direitos e interesses coletivos. A pandemia de Covid-19 reforçou a necessidade do fortalecimento ainda maior de suas organizações e lutas em busca da superação do processo histórico de invisibilização, exclusão, discriminação e negação de direitos, tanto por parte do poder público estatal quanto por parte de parcela do movimento indígena. Como consequência, temos hoje um emergente e crescente processo de organização, mobilização e luta de comunidades, povos e segmentos de jovens, estudantes, mulheres e profissionais indígenas nos centros urbanos. Algumas organizações são étnicas, outras pan-étnicas e há, ainda, as que representam segmentos específicos de profissionais, gênero, faixas etárias ou grupos com interesses comuns, como são as organizações de artesãos ou moradores de uma cidade, ou mesmo de um determinado bairro ou município.
Esse novo movimento indígena citadino é uma importante promessa do movimento indígena mais amplo, que precisa se atualizar e se reprogramar em seu escopo de composição e em suas agendas, pautas e estratégias para incluir e contemplar as demandas e os interesses desses novos sujeitos coletivos, que chegam com muita força e vitalidade política, étnica e cultural, e representam mais de 60% da população indígena do país. Essa população indígena citadina apresenta mais possibilidades, oportunidades e condições de mobilização, articulação, diálogo e pressão junto aos poderes públicos, à opinião pública e à mídia, porque estão em cidades, que são lugares de tomadas de decisões, com a presença da mídia e de maiores facilidades na comunicação e nos transportes, condições essenciais para a mobilização de suas forças organizativas, tendo como objetivo exercer pressão sobre os tomadores de decisões. Em sete grandes marchas indígenas realizadas na cidade de Manaus nos últimos seis anos (a partir de 2014), cada uma com uma média de mil indígenas marchantes, mais de 70% dos participantes, mobilizadores e organizadores eram residentes de cidades, majoritariamente da cidade de Manaus e de cidades do entorno.
Trata-se, portanto, de um debate necessário e importante sobre a questão complexa e mal compreendida no tocante às identidades e aos direitos dos indígenas residentes em cidades ou territórios não reconhecidos pelo Estado brasileiro. Esse tema é irreversível no campo do debate, da organização e da implementação de políticas públicas indigenistas. A pandemia fez explodir problemas graves causados por séculos de omissão, descaso e racismo contra essa parcela significativa dos povos indígenas, os quais se aprofundaram após a crise sanitária. O Estado brasileiro e a sociedade, incluindo o movimento indígena, precisam assumir a tarefa de reestruturar as políticas públicas voltadas para os povos indígenas a fim de atender a todos, sem nenhuma distinção.
A exclusão de indígenas residentes em cidades da atenção do Subsistema de Saúde Indígena é uma injustiça histórica sem tamanho, um erro que precisa ser reparado. Não é possível conviver com as ideias colonialistas e racistas de que os indígenas residentes em cidades não são indígenas ou são menos indígenas, razão pela qual devem ser tratados como não indígenas ou brancos, não podendo receber atenção específica e diferenciada do Estado, como determina a Constituição Federal. Essa injustiça com os povos indígenas citadinos é o resultado de visões que opunham da antropologia tradicional ultrapassada, que opunham índios “aldeados” e índios “desaldeados”, ou mesmo “índios destribalizados” e “desterritorializados”. Mais recentemente, e com os avanços crescentes nas conquistas de direitos, o Estado e as suas políticas públicas foram buscando outras formas e argumentos para excluir outras comunidades e populações indígenas e, assim, reduzir o público-alvo de suas políticas, diminuindo o tamanho dos investimentos orçamentários (Baniwa, 2021).
Mas quem são os indígenas vivendo em cidades? A resposta é simples: são indígenas membros dos 305 (trezentos e cinco) povos indígenas do Brasil. Trata-se de pessoas indígenas com o mesmo sangue que circula nas veias, as mesmas culturas, tradições, línguas, princípios e valores de pessoas indígenas habitantes de terras e aldeias reconhecidas pelo Estado. Chamo a atenção para a gravidade das criações artificiais e arbitrárias de categorias hierarquizadas para se definir quem é indígena e quem não é indígena, ou ainda quais categorias indígenas têm determinados direitos ou não. Isso gera uma desigualdade e discriminação intraétnica profundamente perversa, dolorosa, injusta e desumana.
Vejo todos os dias indígenas que, assim como eu, residem em cidades, valorizando, praticando e vivendo suas culturas, línguas, saberes, fazeres e valores tradicionais, e em muitos casos e momentos, reaprendendo suas línguas e tradições. Muitos indígenas que se encontram morando em cidades estão em trânsito, estudando, tratando sua saúde e cuidando de parentes doentes, visitando parentes, passando uma temporada de trabalho ou passeio. Essa mobilidade e transitoriedade espacial é parte dos modos tradicionais de viver dos povos indígenas, baseados nas ideias de liberdade de ir e vir, de conhecer outros lugares, de buscar outros conhecimentos, saberes, culturas e modos de vida. Em geral, os povos indígenas não concebem suas moradias e lugares de residência como fixas, privativas ou exclusivas. Assim, os indígenas morando em cidades estão sempre com um pé na aldeia, mantendo forte e profundo o vínculo e a interação constante com seus territórios, etnias, famílias e comunidades de origem. Uma pesquisa com 115 comunidades indígenas de Manaus revelou que quase metade dessas famílias recebeu entre seis e dez parentes residentes em aldeias muito distantes de Manaus, no período auge da pandemia de Covid-19. Esse dado demonstra o tamanho da mobilidade dos povos indígenas, o que invalida qualquer tentativa de estabelecimento de fronteiras ou muros socioculturais e jurídicos entre eles. A própria denominação “aldeia” apresenta sentido limitado, uma vez que, na atualidade, muitos povos indígenas, como os 23 que habitam a região do Rio Negro, desconhecem essa denominação, pois suas organizações comunitárias são denominadas de comunidades, ou seja, comunidades indígenas.
Imagem: Reprodução Site Radar Saúde Favela
Mas o que caracteriza uma aldeia ou comunidade? São coletivos indígenas morando em um espaço territorial socialmente organizado, com suas lideranças sob a coordenação de um cacique ou tuxaua, e segundo suas tradições culturais próprias. Uma aldeia ou comunidade indígena existe independentemente do seu reconhecimento por parte do Estado, ou de sua localização em um território indígena reconhecido e demarcado ou não pelo Estado. Além disso, foram as cidades que foram construídas dentro dos territórios indígenas tradicionais. Assim, para os povos indígenas, as cidades, enquanto espaços territoriais onde se vive, são extensões de seus territórios tradicionais. É por isso que em muitas cidades existem aldeias ou comunidades em que suas formas de organização e funcionamento não diferem daquelas situadas em terras indígenas distantes das cidades, com seus caciques, tuxauas, e vivendo conforme suas organizações sociais, culturais, políticas, tradições, línguas, danças, músicas, rituais e modos de vida.
A separação e a discriminação artificial entre os povos indígenas resultam em desvantagem e enfraquecimento dos povos indígenas na luta por seus direitos e por suas existências e, pasmem, em vantagem e fortalecimento do Estado no seu processo de dominação colonial. Colocam os povos indígenas em conflito entre si mesmos, processo no qual todos perdem, na medida em que se enfraquecem em suas frentes de luta. Se essas populações continuarem excluídas, a tendência é a fragmentação e tensão nas próprias pautas de luta dos distintos movimentos indígenas, principalmente se considerarmos a tendência de crescimento das organizações indígenas representativas das comunidades situadas em cidades e em terras indígenas não reconhecidas. Na cidade de Manaus, por exemplo, existem pelo menos uma dúzia de aldeias, comunidades ou “bairros indígenas”, alguns com populações acima de 10 mil indígenas, como é o caso do “Parque das Tribos”. Essa nova realidade requer, tanto do movimento indígena quanto dos governos e do Estado brasileiro, respostas adequadas e urgentes. Quanto a isso, as primeiras tentativas de respostas e adequações já foram observadas durante a pandemia de Covid-19, quando, em alguns estados e municípios, os indígenas residentes em cidades foram à justiça por meio do Ministério Público e conquistaram o direito de vacinação prioritária (Baniwa, 2021).
A outra consequência da exclusão das comunidades indígenas localizadas em cidades é o aprofundamento da desigualdade e da iniquidade intraétnica e interétnica, da discriminação e dos preconceitos que moralmente são inconcebíveis e inaceitáveis nas culturas indígenas. Nós somos indígenas sem distinção, a não ser a nossa pluralidade étnica, cultural e linguística. Pluralidade essa que não nos diferencia em termos de direitos, pois não se trata de divisão entre indígenas de menos ou indígenas de mais, entre indígenas com direitos ou indígenas sem direitos. Isso não quer dizer que as prioridades e demandas no campo dos direitos e políticas públicas sejam iguais. Mesmo entre as comunidades indígenas situadas em terras indígenas, as demandas e prioridades não são homogêneas. Algumas priorizam demandas territoriais, outras demandam atividades econômicas, outras demandam atividades de organização social e cultural, outras, ainda, demandam prioritariamente educação e saúde. Essas demandas e prioridades são definidas conforme o processo histórico, a realidade contextual e os planos de vida desenhados para o futuro. Comunidades indígenas situadas dentro de cidades ou no entorno delas tendem a demandar e priorizar buscas por emprego e renda, profissionalização técnica, mas também por políticas assistenciais de educação, saúde, segurança alimentar, segurança pública, além da luta por moradia e terra.
Muitos que concordam ou defendem a exclusão de indígenas residentes em cidades do atendimento do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena e da Secretaria Especial de Saúde Indígena usam o argumento de que estes indígenas já são atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), por meio de sua rede de hospitais e Unidades Básicas de Saúde (UBS), localizada e funcionando nos centros urbanos. Essas pessoas não conhecem e não sabem das enormes dificuldades e inadequações de acesso e de atendimento dessa rede, mesmo com a sua importância e robustez estrutural e funcional demonstrada durante a pandemia de Covid-19. Indígenas que moram nas cidades sabem das dificuldades de acesso à rede SUS. Pesquisas realizadas em Manaus revelaram que a Rede SUS só atende 30% da população da periferia. Nesse número, enquadram-se os indígenas. Isso significa dizer que 70% de indígenas e pessoas pobres que moram nas periferias não têm acesso à rede das UBS e dos hospitais do SUS, simplesmente porque moram em lugares distantes, não possuem condições de deslocamento e sofrem com longas esperas (dias, semanas, meses, anos) para serem atendidos. A primeira dificuldade nas cidades, portanto, é o acesso à rede SUS no tocante a deslocamento, distâncias e longas esperas para atendimento. A segunda dificuldade é a questão sociolinguística. Os indígenas são discriminados nas UBS e hospitais da cidade porque ninguém considera que eles falam outras línguas e muitos não falam e nem compreendem, ou compreendem muito pouco, o português, tal como ocorre com os que vivem na aldeia. Não são respeitados em seus hábitos alimentares, em suas formas de dormir em redes e, principalmente, em suas formas tradicionais de conceber, cuidar e curar de doenças. Há uma discriminação tremenda, culturalmente falando, nos sistemas hospitalares do SUS, na cidade.
Há muitas razões para se pensar em uma atenção à saúde diferenciada para indígenas “não aldeados”, inclusive, de ordens axiológicas. A discriminação negativa imposta a eles é um tipo de violência muito maior do que a violência física. É uma desmoralização muito grande, que fere a nossa dignidade, a nossa identidade, a nossa existência. Não preciso ir longe em busca de exemplo ou demonstração dessa violência, pois eu sou uma das vítimas. Minha mãe, meus irmãos, sobrinhos e netos logo foram vacinados contra a Covid-19 porque estavam na comunidade e eu fiquei muito feliz com isso. Mas eu não fui vacinado prioritariamente como eles, simplesmente porque eu transito pela cidade e trabalho na cidade, inclusive, por eles e para eles. Trabalho como professor formador de professores indígenas. Passei a minha vida inteira lutando e defendendo esses direitos coletivos. Participei e contribuí com a construção do Subsistema de Saúde Indígena, mas não pude me beneficiar desse direito coletivo que ajudei a conquistar. Foi, e continua sendo, doloroso me sentir discriminado, negado, condenado a me sentir um indígena diferente, menor ou inferior. É muito doloroso, sendo indígena, ser tratado como não indígena, como um branco (Baniwa, 2020). É determinante o entendimento de que os distintos contextos em que vivemos – aldeias, comunidades, sítios, vilas, distritos, cidades, em terras indígenas demarcadas ou não – não nos fazem diferentes para termos direitos diferentes, distintos ou excludentes. É importante afirmar que muitos indígenas que estão fora de suas terras tradicionais, estão porque foram expulsos pelo próprio Estado ou estão a serviço de suas comunidades e seus povos.
Referências
AGÊNCIA BRASIL. 2021. População residente em área indígena e quilombola supera 2,2 milhões. Agência Brasil.Https://agenciabrasil.ebc.com.br, publicado em 15/10/2021, acessado em 08/04/2022.
BANIWA, Gersem. 2020. “De Gersem Baniwa para as pessoas que sonham outro Brasil”. Em: Costa, Suzana Lima; Xucuru-Carri, Rafael. Cartas para o Bem Viver. Editora Paralelo 13S, São Paulo.
BANIWA, Gersem. 2021. Palestra ministrada no Seminário Virtual Atendimento à Saúde para Indígenas em Contexto Urbano – Perspectivas a partir da decisão na ADPF 709, organizado pela 6ª CRR – MPF, no dia 23 de março de 2021.
WITOTO, Wanda. 2021. Depoimento prestado durante o Seminário Virtual Violações de Direitos e Genocídio no Amazonas, realizado pela Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (FAMDDI) nos dias 29 e 30 de abril de 2021.