Texto: José Ribamar Bessa Freire (Taquiprati)
Imagem: Site Taquiprati
Será que a minhoca comeu a alma de José Peixoto Ypiranga dos Guaranys? Essa foi a pergunta que fiz a Marcelo Sant´Anna Lemos e Luiz Guilherme Scaldaferri Moreira, autores de “O primeiro indígena universitário do Brasil”, durante roda de conversa com eles e a historiadora Regina Celestino. Foi no lançamento do livro nessa sexta (24), na livraria da Eduerj, no Rio.
Bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo, José Guaranys, que foi colega de turma do escritor José de Alencar, de quem se tornou amigo e compadre, obteve o diploma de advogado, em 1850. Como ele conseguiu estudar? Não tinha Lei de Cotas, nem bolsa de estudos. Quais as causas que defendeu? A favor de quem usou seu diploma? Estava comprometido com os direitos indígenas?
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Sua vida foi reconstituída pelos dois pesquisadores, que vasculharam arquivos de pequeno, médio e grande porte para traçar – segundo Regina Celestino – a “trajetória instigante, complexa e controvertida” de José dos Guaranys (1824-1873), nascido na aldeia de São Pedro, em Cabo Frio (RJ).
O livro faz breve resumo da ocupação territorial da região de Cabo Frio, aborda as guerras coloniais até a fundação do aldeamento de São Pedro, em 1617, para então reconstruir a árvore genealógica do biografado, desde seu bisavô, no séc. XVII, até chegar a seu pai Joaquim Rodrigues Peixoto, capitão-mor da aldeia de São Pedro, que pediu financiamento para que indígenas cursassem a universidade, o que lhe foi, então, negado.
A identidade indígena
O Visconde de Araruama, chefe da Diretoria Geral dos Índios – uma espécie de FUNAI da época – nomeou Joaquim, em 1847, tesoureiro da aldeia e ele logo propõe usar o dinheiro da Conservatória dos Índios para pagar os estudos universitários do seu filho. E os outros? Os outros eram “os outros”, ora.
Mas o velho Joaquim não era um pé-rapado, estava montado na bufunfa. A família Ypiranga dos Guaranys era proprietária de fazenda, explorava o trabalho de escravizados e atuava na Câmara de Vereadores de Cabo Frio em defesa de interesses próprios e não dos indígenas. Fazia parte da elite local e frequentava a Corte de D. Pedro II.
O jovem acadêmico entra na Faculdade de Direito de São Paulo como José Dias Peixoto – seu nome de batismo – e sai de lá já advogado como José Peixoto Ypiranga dos Guaranys – nome do seu bisavô, reafirmando assim sua identidade, talvez por influência do indianismo na literatura, que conferia outro status aos indígenas.
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Lá, na Faculdade, ele ficou assim oh (esfreguem os dois dedos indicadores) com José de Alencar, que logo escreveria os romances da trilogia indigenista O Guarani, Iracema, Ubirajara, além da amizade com Joaquim Felício dos Santos, da mesma turma, autor do romance Acayaca. Com eles, criaria no primeiro ano do curso o Instituto Literário Acadêmico, que editou a Revista Ensaios Literários. Ou seja, José dos Guaranys estava “bem acompanhado”: Alencar seria depois ministro da Justiça e Joaquim Felício, presidente do Senado.
Os dois historiadores – Luiz Moreira, doutor pela UFF e Marcelo Lemos, mestre pela UERJ – são autores conhecidos de livros sobre a história indígena fluminense. Filiados à chamada “nova história indígena”, eles se inspiraram no sempre saudoso John Monteiro, para quem “é preciso destacar o protagonismo indígena a partir da leitura dos contextos que se apresentavam, longe de serem simples respostas passivas aos interesses da sociedade nacional”.
Na universidade
Quase esqueço disso no prefácio que escrevi “De Ypiranga dos Guaranys a Eloy Terena e Joênia Wapixana”. Lá, destaco a presença de indígenas na universidade, que começa no séc. XIX. Quantos indígenas no Brasil estudam hoje em cursos superiores? Eram 7 mil em 2010. Esse número cresceu anualmente, graças às políticas educacionais. Oito anos depois já havia subido para 57.706, segundo dados de do Censo Escolar (2018) do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.
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Nos (des) governo Bolsonaro, o número caiu para 47.267 em 2020 – a última vez em que os dados foram divulgados. A política era impedir que se formassem, entre outros, advogadas como Joênia, que atuou junto ao STF em defesa dos direitos indígenas. Ou como o Eloy Terena, advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) na ação judicial ADPF nº 798. Foi a primeira vez que um advogado indígena, em 520 anos de Brasil, defendeu os direitos dos índios no STF, ouviu doutor José dos Guaranys?
Não, ele não ouve mais. Aliás, nunca ouviu. De qualquer forma, é relevante saber que a presença de indígenas na universidade começa lá atrás, no séc. XIX, com José Peixoto Ypiranga dos Guaranys. Hoje, o panorama é outro. Na semana passada, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) fez concurso para seu quadro permanente de docentes, com vários candidatos indígenas, todos com mestrado, tendo sido aprovada em 1º lugar Adriana Kaingang, que em setembro defende sua tese de doutorado orientada por Ana Lúcia Notzold.
Quanto ao Ypiranga dos Guaranys, os autores registram que, além de advogado, ele era proprietário de terras e de escravos, comerciante, promotor público e foi vereador e inspetor escolar em diversas cidades. Costumava visitar a Corte para puxar o saco do Imperador Pedro II e acompanhava o seu pai no comércio de cabotagem realizado na Baía de Guanabara. Quando José dos Guaranys morreu, aos 49 anos, deixou de herança 17 escravizados, duas fazendas, um chão no arraial, entre outros bens.
A flecha da memória
A leitura da trajetória do Ypiranga dos Guaranys nos traz ao momento em que vivemos hoje. Os Guarani costumam usar a metáfora do arco e flecha da memória para retomar o controle de seu destino: “Agora, no tempo presente, é preciso recuar a corda do arco ao passado, para de lá impulsionar a flecha ao futuro”. Num certo sentido a biografia do primeiro índio universitário no Brasil é uma flecha para o futuro, que abre o debate sobre a participação indígena na construção da nação brasileira. O que Joênia Wapixana e Eloy Amado Terena diriam hoje ao José dos Guaranys?
Num evento na UFF, há alguns anos, Taily Terena perguntou a Davi Yanomami o que ele diria aos universitários indígenas que vieram estudar nas cidades.
– Eu perguntaria: a tua comunidade te autorizou a fazer o curso? É um projeto individual ou coletivo? – respondeu Davi, que avaliou a escola dos Napé (os brancos) como muito boa, capaz de ajudar os indígenas a apreender o mundo do branco, como aconteceu com Joênia Wapixana e Eloy Terena. Mas Davi acrescentou o mesmo tipo de exigência da CAPES e do CNPq aos seus bolsistas:
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A comunidade espera que quem se formou advogado, médico, dentista, professor, volte para ajudar. Mas tem alguns que não voltam. A minhoca come a alma dessas pessoas que se vendem. É assim que funciona o mundo dos brancos. Tem que ter cuidado com aquelas pessoas que querem usar a escola para enganar a gente.
P.S. – O filósofo e poeta da Mangueira, Pedro Antônio Custódio, não pôde comparecer ao lançamento do livro, mas deixou um poema, no qual se pergunta o que fazer com apenas uma flecha que possui diante de tantos alvos. “Um alvo apenas me bastaria, pois, acertar um, acertaria todos”.
Nesta semana tivemos cinco alvos, todos merecendo uma crônica. Não sei se acertei todos com uma única flechada:
- Na Capela Ecumênica da UERJ, a concorrida cerimônia de concessão do merecido título de Professora Emérita à Nilda Guimarães Alves doutora em Ciências da Educação pela Université René Descartes (Paris V), homenageada por sua colega Ana Chrystina Mignot. “No meu trabalho docente, formei quatro gerações, é como se tivesse bisnetos acadêmicos”. Rezamos para que venham os trinetos.
- A dissertação de mestrado sobre a Aldeia Maraká´nã como espaço intercultural defendida por Erlan Raposo da Silva, sob a orientação de Letícia de Luna Freire do Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (FEBF-UERJ). Entre os presentes, Hélio Xokó, pai do agora mestre e a mãe dona Maria Helena. A banca composta pela orientadora, a doutora Kelly Russo e esse locutor que vos fala, recomendou a publicação em livro.
- O concurso do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) para professores de línguas indígenas da Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, numa banca presidida pelo arqueólogo e historiador Lucas de Melo Reis Bueno, com a participação de Gersen Baniwa (UnB), que aprovou cinco candidatas indígenas.
- O lançamento do livro sobre o Ypiranga Guaranys com a presença de vários historiadores: Hebe Mattos, Isabel Missagia, Marieta Carvalho, Marise Guarany, Leonardo Guimarães Vaz
- e outros da área de matemática, letras e pedagogia, além de dona Lina Lemos, 92 anos, mãe de um dos autores.
- O lançamento em São Paulo, na sexta (24), do curta-metragem “Singular” do jovem cineasta Miguel Atanes, diretor e roteirista, com a atriz Priscylla Atanes, cujo personagem recebe na porta de seu apartamento bilhetes com recadinhos misteriosos, um deles perguntando: “O que aconteceu com a felicidade dos velhos tempos”? O final é surpreendente. Mas não dou spoiler.
Imagem: Site Taquiprati
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