Indígenas relatam desassistência e insegurança com barragem cheia em José Boiteux

Texto: Paulo Batistella – Site NSC Total

Governo do Estado diz que presta ajuda aos indígenas e que manobras em barragem são seguras e monitoradas pela Defesa Civil

Moradores da Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklaño, no Alto Vale do Itajaí, relatam falta de apoio de autoridades públicas e insegurança com a cheia da barragem Norte, que represa o Rio Hercílio dentro do território. A estrutura tem chance de verter água nesta sexta-feira (13), a menos de um metro de atingir a cota máxima — manobra que, segundo a Defesa Civil, é segura e controlada. O governo de Santa Catarina contesta o relato dos indígenas sobre desassistência e afirma cumprir pedidos da comunidade.

Os apelos dos indígenas chegaram também, através da Funai, à Justiça Federal, que determinou, na quinta-feira (12), que o governo catarinense e a União comprovassem, em até 24 horas, o cumprimento de medidas de apoio aos moradores do território, endossadas pelo Ministério Público Federal (MPF).

São elas: a desobstrução e melhoria das estradas da TI; disposição de equipe de atendimento de saúde em postos 24 horas; concessão de três barcos para atendimento da comunidade e de ônibus para deslocamento até a cidade de José Boiteux; fornecimento de água potável e de cestas básicas; e construção de novas casas em local seguro e em nível longe do rio para atender as famílias que tiverem suas residências submersas na ocasião do fechamento das comportas.

Em nova decisão nesta sexta, assinada por um outro juiz, a Justiça considerou que “a princípio e na medida do possível, o Estado está adotando as providências necessárias e condizentes com a situação”.

Os despachos partiram do mesmo processo em que foi autorizado o fechamento das comportas do local, ocasião em que houve confronto, no domingo (8), para contenção de cheias em grandes cidades da região, como Blumenau, em meio às fortes chuvas no estado.

A Justiça Federal também determinou que o governo catarinense apresente um relatório técnico relativo à operação excepcional da barragem, com eventuais recomendações de novas intervenções.

Na segunda (9), a gestão Jorginho Mello (PL) informou ter fornecido cestas básicas e água para 969 famílias do território, em quantidades que a comunidade contesta, no entanto, ter sido insuficiente.

Barragem de José Boiteux se aproxima da capacidade máxima e pode verter; entenda o impacto

De acordo com os indígenas, foram repassados cerca de 20 litros de água potável para cada família, e as cestas não incluíram proteínas. Além disso, a ajuda só chegou a uma parte dos moradores das nove aldeias que compõem o território, das etnias Xokleng, Guarani e Kaingang, já que vários deles estão ilhados devido a alagamentos e deslizamentos nas estradas do local.

O governo estadual afirmou ter oferecido três embarcações e uma ambulância para a TI, em condições, contudo, que também não atendem aos apelos dos indígenas. A própria Defesa Civil informou, ao NSC Total, que os barcos não corresponderam ao modelo pedido pela comunidade, o que teria sido o motivo para o atraso na entrega.

— Circulou que a gente não aceitou ajuda, e não é verdade. A gente aceita as coisas dentro da legalidade. Quiseram oferecer uma ambulância sem uma equipe multidisciplinar, sem equipamentos e sem motorista, para a gente assumir. Quiseram dar barcos sem motor, tocado a remo, e a gente não aceitou — disse o cacique-presidente do território, Setembrino Camlem, à reportagem.

Segurança da barragem

Camlem afirmou ainda que a comunidade não é contra o governo controlar a operação da barragem, mas cobra que as medidas mitigatórias sejam cumpridas. Além disso, o cacique-presidente afirma que os indígenas não se responsabilizam por eventuais danos da barragem, por entender que ela não é segura.

A Defesa Civil conta com um laudo de inspeção de segurança regular da barragem emitido em agosto de 2021. O documento apontava uma série de anomalias na estrutura e fazia 25 recomendações de melhorias, classificando o empreendimento em nível 1 de perigo global, o de atenção, em uma escala que vai de 0 a 3. Ele afirmava ainda que não havia comprometimento da segurança naquela altura, mas que isso poderia ocorrer, caso os problemas progredissem, sendo necessário monitoramento e reparos.

Nenhuma manutenção foi feita na barragem desde então. Além disso, um novo laudo sobre a estrutura deveria ter sido feito em até dois anos, conforme prevê o regramento da Agência Nacional de Águas (ANA) inserido na Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB).

A Defesa Civil afirmou, ao NSC Total, contar com um laudo interno de inspeção de segurança realizado em janeiro de 2023 e que a maioria das recomendações do documento anterior tratavam em sua maioria da ausência de uma estrutura de operação das comportas, que havia sido depredada.

“Um sistema provisório foi acoplado no local para permitir o controle emergencial das barragens e a proposta é a instalação de um modelo definitivo assim que concluídas as etapas de negociação com a comunidade indígena da região”, escreveu a pasta, em nota, acrescentando que o fechamento das comportas ajudou a diminuir em 4 metros o nível de rios Médio Vale e na Foz do Rio Itajaí.

No último sábado (4), o governo de Santa Catarina havia descartado operar a barragem por entender que a manobra não seria segura. A Defesa Civil voltou atrás, contudo, três dias depois, alegando que análises técnicas garantiram a segurança do procedimento.

No início da tarde desta sexta, a barragem tinha 96,5% de sua capacidade cheia, segundo o governo estadual. Até o próximo domingo (15), a previsão é de que a chuva perca força, mas a precipitação deve voltar com maior volume entre segunda e terça (17).

Famílias indígenas ocupam abrigo improvisado

As reivindicações dos indígenas da TI Ibirama-Laklaño sobre medidas compensatórias em caso de operação da barragem, como ocorre agora, são anteriores à judicialização do impasse. Em janeiro deste ano, em audiência pública no território, a Defesa Civil havia apresentado um plano de contingência que prevê assistência aos moradores em caso de inundação das aldeias pelo fechamento das comportas, com oferta de cestas básicas, ônibus para transporte, garantia de serviços de saúde e até evacuação com helicópteros a depender do nível de cheia do Rio Hercílio, que deságua no Rio Itajaí-Açu.

Agora, além da entrega de água e cestas anunciada pelo governo do Estado, foi cedida uma van para transportar os moradores. Os postos de saúde estão, no entanto, sem medicamentos. Uma unidade da aldeia Pavão está coberta pela água da enchente. Há apenas uma médica que se dispôs a atender voluntariamente, segundo o grupo Juventude Xokleng comunicou ao NSC Total.

Quem ainda consegue se deslocar pelo território tem deixado casas alagadas ou aqueles que entendem estar sob risco rumam para um abrigo improvisado na aldeia Plipatol, próximo à barragem. Cerca de 100 famílias acampam em um salão no local com goteiras, sem colchões suficientes e que os indígenas afirmam estar condenado. A prefeitura de José Boiteux afirma ter prestado apoio para a montagem adaptada do espaço. Há ainda pessoas em barracas de lona no entorno da estrutura.

— A gente está agradecendo as entidades não governamentais, que estão dando apoio à comunidade indígena com água, alimento, lona. Quero deixar claro que a gente não tem uma assistência suficiente da Defesa Civil até agora, não teve o atendimento que é de responsabilidade dela — disse o cacique-presidente da TI, Setembrino Camlem, em vídeo gravado de dentro do salão.

Ele afirmou à reportagem que há também famílias acolhidas em igrejas evangélicas espalhadas pelo território indígena, que agora servem de abrigo improvisado.

Barragem é motivo de impasse antigo

A estrutura de José Boiteux é uma das três barragens instaladas no Alto Vale do Itajaí para contenção de cheias em cidades mais baixas da mesma bacia hidrográfica e com milhares de moradores, junto de equipamentos parecidos de Taió e Ituporanga, também acionados pela Defesa Civil catarinense neste período de chuvas.

A barragem em território demarcado começou a ser construída na década de 1970 e é alvo de litígio desde então, por ter alagado a área de plantio dos indígenas e afetado construções do entorno. Ela ainda alterou o perfil do Rio Hercílio no local, agora represado e com menos peixes, uma das bases da alimentação indígena. Isso é motivo de pressão sobre a insegurança alimentar local, conforme já mostrou o NSC Total.

NSC Total já mostrou também, que entre os vários episódios do impasse, a barragem foi alvo de depredação em 2014, altura em que os maquinários das comportas sumiram. Além disso, em 2015, havia sido feito um acordo para a execução de melhorias na comunidade e na barragem que viabilizassem o uso da estrutura, após protestos dos indígenas, o que, no entanto, não se cumpriu.

A terra Ibirama-Laklaño também foi alçada ao noticiário nacional neste ano por estar no centro de uma ação judicial que levou o Supremo Tribunal Federal (STF) a tornar inconstitucional a adoção do marco temporal para a demarcação de territórios indígenas em todo o país. O processo opunha os Xokleng ao governo de Santa Catarina, que era contrário à ampliação da área demarcada.

O que dizem as autoridades

A prefeitura de José Boiteux, um dos quatro municípios pelos quais a terra indígena se espalha, divulgou na terça-feira (10) que realiza reparos na estrada que liga a cidade à barragem Norte. A gestão de Adair Antonio Stollmeier (PP) comunicou ainda ter atuado na manutenção de abrigos em duas aldeias do território e no transporte de cestas básicas e água para os moradores da comunidade.

O governo de Santa Catarina divulgou que evidenciou, em reunião com o Ministério dos Povos Indígenas, vinculado à gestão Lula (PT), na quinta-feira (12), ter cumprido o acordo que assinou com os indígenas no último sábado (7), para viabilizar o fechamento das comportas. Disse ainda que, na mesma reunião, com presença de diferentes secretários, acolheu uma sugestão da pasta federal em criar um gabinete de crise conjunto para acompanhar a questão.

Nesta sexta-feira (13), a Defesa Civil do Estado reforçou ainda, em nota, entender que há segurança na barragem Norte e na possível manobra de vertimento da água.

“A barragem é projetada de forma estrutural para ir esvaziando o excesso de água de seus reservatórios pelo vertedouro. O fim das três séries de chuva forte deve fazer a barragem parar de verter em um curto espaço de tempo”, escreveu a Defesa Civil.

Ao NSC Total, a pasta comunicou ainda, em nota, que entende ter cumprido todos os acordos realizados com as lideranças indígenas para a retomada das operações.

“A secretaria tem documentados os comprovantes de entrega de uma van de 15 lugares que já foi colocada à disposição da comunidade pelo cacique presidente. Foram entregues também uma ambulância e medicamentos solicitados, em uma ação de suporte da Secretaria de Estado da Saúde.”

A Procuradoria-Geral do Estado catarinense (PGE-SC), que atua em favor no governo no caso em tramitação na Justiça Federal, comunicou que prestaria esclarecimentos no próprio processo.

“O Governo de Santa Catarina continua atuando a fim de garantir a preservação da vida e a segurança de todos os catarinenses”, escreveu a PGE-SC, à reportagem.

O Ministério do Povos Indígenas divulgou ter se reunido também com lideranças da Ibirama-Laklaño na quarta-feira (11), representado pela secretária de Direitos Ambientais e Territoriais Indígenas da pasta, a catarinense Eunice Kerexu. O ministério afirma que alinhou a comunicação entre as partes para se evitar novos enfrentamentos como o que ocorreu durante o fechamento das comportas. Na ocasião, dois indígenas foram feridos em ação ostensiva da Polícia Militar e cerca de 30 indígenas se insurgiram contra os termos negociados pelo próprio cacique-presidente e incendiaram componentes da represa.

“Também ficou definido que a Funai fará a entrega de lonas, tendas, colchonetes e todos os suprimentos necessários para a segurança das comunidades. Os indígenas pediram ainda barracas e banheiros químicos, que a Defesa Civil está averiguando a possibilidade de disponibilizar”, comunicou o ministério.

A reportagem também tentou contato com a Advocacia-Geral da União (AGU) para tratar dos despachos da Justiça Federal, mas não obteve retorno até a publicação.

Leia a íntegra do que diz a Defesa Civil catarinense:

“A Defesa Civil iniciou a operação da barragem de José Boiteux justamente por considerá-la segura e entender que sua operação ajudaria a reduzir os impactos da chuva histórica que atingiu Santa Catarina nas últimas semanas. O fechamento das comportas da barragem Norte ajudou a reduzir o nível do rio Itajaí-Açu em até 4 metros para as cidades do Médio Vale do Itajaí e da Foz do Vale.

Um laudo interno de inspeção de segurança foi realizado em janeiro de 2023, mês em que iniciaram as negociações com a comunidade indígena para que o Estado retomasse a operação da barragem. As recomendações eram em sua maioria sobre a ausência de uma estrutura de operação das comportas, que foi depredada no período em que a gestão não estava sob o controle do Estado. Um sistema provisório foi acoplado no local para permitir o controle emergencial das barragens e a proposta é a instalação de um modelo definitivo assim que concluídas as etapas de negociação com a comunidade indígena da região.

A Defesa Civil está cumprindo todos os acordos realizados com as lideranças indígenas para a retomada das operações. A secretaria tem documentados os comprovantes de entrega de uma van de 15 lugares que já foi colocada à disposição da comunidade pelo cacique presidente. Foram entregues também uma ambulância e medicamentos solicitados, em uma ação de suporte da Secretaria de Estado da Saúde.

Após acordo com as lideranças, também foi liberada na última segunda-feira, dia 9, a entrada da ajuda humanitária com cestas básicas e água potável para 969 famílias. Três barcos foram enviados para José Boiteux, mas na entrega para a comunidade foram solicitados modelos específicos de embarcações diferentes, atrasando o processo que busca agora ser concretizado com o barco no novo modelo pedido.

 

 

 

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Rodrigo Martins

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