Entenda quais foram os significados de ‘pardo’ nos últimos 80 anos e como isso dificultou a identificação racial do Brasil

Texto:  Artur Nicoceli, g1
Termo foi incorporado como categoria oficial no Censo a partir de 1950 e é alvo de debates raciais desde então. Hoje, o IBGE considera pardo quem se identifica como: mistura de duas ou mais opções de cor, ou raça, incluindo branca, preta e indígena.

O número de brasileiros que se identificam como pardos chegou a 45,3% da população, segundo os dados do Censo 2022 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O resultado deu à categoria o posto de maior grupo racial do Brasil pela primeira vez na história.

🧑🏽 Mas o que é pardo? No último levantamento, o termo foi definido como: quem se identifica com mistura de duas ou mais opções de cor, ou raça, incluindo branca, preta e indígena.

Porém, o significado da palavra nem sempre foi esse. Desde a fundação do IBGE, em 1936, o conceito mudou de sentido diversas vezes — e houve até anos que não havia explicação exata sobre quem a categoria deveria representar (veja abaixo).

Entenda nesta reportagem quando o termo “pardo” vira categoria oficial, como o significado muda ao longo dos anos e quais são os grupos que reivindicam o conceito da palavra no Censo até hoje.

Pardo como categoria residual

No primeiro levantamento realizado pelo IBGE, em meados de 1940, a maioria da população se identificou como branca:

  • Branco — 63,46% da população;
  • Preto — 14,63%;
  • Amarelo — 0,58%;
  • Pardo — 21,20%;
  • De cor não declarada — 0,10%.

“[Naquele ano], pardo era uma categoria residual”, disse Marta Antunes, coordenadora do Censo de Povos e Comunidades Tradicionais. Ou seja, quem respondesse qualquer categoria que não preta, branca e amarela, era classificada como parda.

Porém, mesmo com a abrangência da categoria, Denis Moura, autor do livro “Pardos: a visão das pessoas pardas pelo estado brasileiro”, afirmou ao g1 que as pessoas tinham dificuldade de se identificar como parda “porque elas poderiam ser relacionadas com pessoas escravizadas, e isso poderia prejudicar, por exemplo, a carreira”.

“Essa omissão, por parte dos mestiços, pardos ou não, seria uma forma de apagar o passado, principalmente entre os pardos mais claros, visto que eles, por conta de terem traços negros ou indígenas menos acentuados, poderiam ser beneficiados com a possibilidade de atingir postos em atividades menos desvalorizadas e, inclusive, obter destaque em cargos públicos”, diz Moura.

Tanto que, nos Censos anteriores — realizados nos anos de 1900 e 1920 — não foram incluídas questões sobre cor ou raça. À época, o órgão responsável pela pesquisa era o Diretoria Geral de Estatística (DGE).

Pardo vira categoria

✅ Em 1950, o termo “pardo” foi incorporado como categoria oficial.

Mas, naquele ano, não houve uma definição do que significava a categoria. Os recenseadores — nome dado as pessoas que fazem as perguntas do Censo à população — apenas explicavam o que era amarelo.

“A cor amarela somente se aplica a pessoas de raça amarela (japoneses, chineses, etc. e seus descendentes). Tal cor não se aplica às pessoas que têm a pele amarelada, como as que sofrem de maleita (impaludismo, malária), amarelão, etc.

Isso porque, segundo a coordenadora do Censo de Povos e Comunidades Tradicionais, existia uma preocupação do governo sobre onde estava localizada a população asiática no país. “O governo queria fazer um mapeamento dos imigrantes [asiáticos]”, afirmou ela.

Na época, o IBGE apontou que a população era dividida em:

  • Branco — 61,66%;
  • Preto — 10,96%;
  • Amarelo — 0,63%;
  • Pardo — 26,54%;
  • De cor não declarada — 0,21%.

Vale lembrar que indígena ainda não era categoria e quem se identificasse dessa forma era incluída na categoria parda.

Somente as áreas que eram controladas pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) tiveram a oportunidade de responder como indígenas — mas, mesmo assim, eram incluídas como pardas no final do levantamento.

‘Branca-suja’; ‘cobre’ e ‘queimada de sol’

Nos anos 1970, durante a ditadura militar, as questões raciais não entraram no levantamento do IBGE. “A avaliação (do governo) era de que a distinção não se fazia necessária”, disse Marta.

Na época, porém, surgiu uma nova pergunta na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), que visava ajudar o IBGE, no mapeamento racial, já que não o instituto não fez perguntas sobre o assunto.

Contudo, diferente do Censo que tem categorias pré-definidas, as repostas puderam ser abertas. Tanto que, segundo Denis Moura, foram ouvidas respostas como:

  • Branca-suja;
  • Cor de cuia;
  • Pouco clara;
  • Sapecada;
  • Sarará;
  • Azul-marinho;
  • Burro quando foge;
  • Melada;
  • Morena-parda;
  • Café-com-leite;
  • Canela;
  • Cobre;
  • Queimada de sol.

“As frequentes inserções e retiradas das perguntas sobre classificação racial nos censos geraram dúvidas, principalmente, entre as pessoas pardas”, diz Moura.

Mudança no método de pesquisa

Entre os Censos de 1980 e 1990, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística decide alterar o método de pesquisa de cor e raça. Antes, o levantamento era feito via questionário base, e passou a ser por amostra.

A diferença entre os dois é que no primeiro caso, 90% da população responde à pesquisa, então era possível ter uma dimensão mais exata sobre as questões étnicas do país. Enquanto no segundo caso, apenas 10% da população responde o questionário, e o IBGE faz uma projeção dos dados populacionais.

“Quando você faz o questionário amostra, você perde a capacidade preditiva (coleta de informações)”, diz Marta.

Já em 2010 e 2022, o questionário base volta a ser o método de pesquisa do IBGE, e os dados, nas palavras de Marta, voltaram a ser mais exatos. O levantamento mais recente aponta que:

  • Os pardos são 92,1 milhões, 45,3% da população. Em 2010 eram 43,1%;
  • Os brancos são 88,2 milhões, ou 43,5%. Em 2010, eram o maior grupo, com 47,7%;
  • Os pretos cresceram 42,3% na última década, e passaram a ser 20,7 milhões, ou 10,2% da população, ante 7,6% em 2010;
  • Os indígenas agora são 1,7 milhão, ou 0,8%, ante 0,5% em 2010

Veja abaixo o comparativo étnico-racial do Brasil dos últimos quatro Censos. Segundo o IBGE, a comparação com anos anteriores não pode ser feita porque indígena vira categoria em 1990.

Pessoas se identificam como pardas

Uma das pessoas que respondeu ser pardo no Censo de 2022 — quando o número de pardos no país ultrapassou o de brancos — foi o jornalista Arthur Roman, de 26 anos.

Ao g1, ele disse que se assumir dessa forma no Censo deixou uma sensação diferente. “Foi a primeira vez na vida que eu me declarei como pardo. Até então, sempre segui a classificação de ‘branco’ que consta na minha certidão de nascimento. Então, nesse sentido, foi uma mudança de paradigma para mim”.

“Nos últimos anos, com o surgimento de sites especializados [em questões raciais] e com aumento da disponibilidade de testes genéticos de genealogia, obtive maiores informações sobre minha ancestralidade, o que me deu mais segurança em me declarar como pardo”, contou Roman, que tem ancestralidade árabe.

Já a atriz Marília Ferreira da Cruz Novaes, de 36 anos, que também se identificou como parda Censo de 2022 — bem como no Censo de 2010 — falou ao g1 que, sempre soube se identificar racialmente.

“[Tem] pessoas que não me enxergam nem como negra (categoria que soma os pretos e pardos), nem como branca”, afirmou Marília.

Ela contou também que seus familiares que se identificam como brancos sempre a chamaram de “diferente” e que ela nunca seria igual eles. Já outra parte da família dela, que se identifica como negra, também a via como diferente — e não a enxergava como branca.

“Tanto que minha mãe sempre reiterou isso (parda) em casa. [Por isso], sempre me reconheci como parda“, disse a atriz.

Expectativa para o próximo Censo e debate racial

O próximo Censo será em 2030, e a coordenadora do Censo de Povos e Comunidades Tradicionais contou ao g1 que há um debate sobre como definir a categoria. Há, no momento, quatro correntes que disputam qual pode ser o novo significado de “pardo”:

  • Movimento indígena nos centros urbanos: as pessoas que descendem de indígenas e não tem nenhuma ancestralidade preta, mas moram nas cidades. O grupo não se vê representado em nenhuma categoria;
  • Movimento pardo-mestiço: as pessoas que não possuem nenhuma ancestralidade indígena ou preta, mas não se identificam como brancos;
  • Movimento negro: que visa incluir o pardo na categoria de negro. Ou seja, somaria a quantidade de pretos e pardos, transformando em uma única categoria;
  • Movimento de parditude: grupo que se identifica como pardo, mas não acredita que essa seja uma escala para chegar no preto. O colorismo — conceito de que a cor da pele determina como uma pessoa negra é tratada — diz que quanto mais escura for a pele de uma pessoa, maior é a chance de sofrer racismo. Então, o movimento parditude deseja criar uma categoria única e não fazer parte de um coletivo.

Marta explicou que até o momento o IBGE não escolheu o que fazer com o termo. “E qualquer mudança resulta em alterações maiores do que somente o levantamento”. Isso porque, por exemplo, desde 2010, há uma padronização nos cadastros públicos e as categorias que aparecem são as mesmas do Censo — ou seja, se alterar na pesquisa, será preciso mudar em outros lugares.

De todo modo, independente da escolha que o Instituto tome em 2030, Marta acredita que a cada pesquisa haverá “um retrato mais fiel da população”.

*Com colaboração de Darlan Helder, Marina Pinhoni e Gabriel Croquer

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Rodrigo Martins

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