Texto: Amanda Mazzei – Site CBN
Escritor, ativista e imortal da Academia Brasileira de Letras fala sobre o legado de Eunice Paiva, advogada retratada no filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles.
“Um dia cheguei na casa dela, tinha na sala um krenak, Ailton, de quem ficou muito amiga”, escreveu Marcelo Rubens Paiva sobre a mãe, Eunice Paiva, em seu livro “Ainda Estou Aqui” (2015). Naquele tempo, Eunice e Ailton “assumiram causas monumentais”, nas palavras de Krenak, para defender da ditadura militar indígenas de diversas partes do Brasil – segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade, milhares foram mortos em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão.
Quem leu “Ainda Estou Aqui” ou assistiu ao filme homônimo de Walter Salles, que estreou no dia 7 de novembro nos cinemas brasileiros, entrou em contato com a força de Eunice Paiva. O destaque maior em ambas as obras é para a luta por justiça pelas violências da ditadura e sua “resistência através do afeto” (como classificou a atriz Fernanda Torres). Viúva sem que soubesse a princípio, cuidou dos cinco filhos e fez de tudo para proteger a memória do marido, o ex-deputado Rubens Beyrodt Paiva, torturado, desaparecido e morto pelo governo.
Eunice se formou em Direito e passou a advogar depois da tragédia, engajada não apenas por sua causa pessoal e familiar, mas pela defesa dos direitos humanos. Integrou o movimento das Diretas Já e foi uma das primeiras críticas à Lei de Anistia, se tornando um dos símbolos da luta contra o autoritarismo, e participou da Assembleia Constituinte.
Mas uma parte importante de seu legado, relatada no livro do filho, é menos lembrada pelas mídias: ao se tornar uma das poucas especialistas em direito indígena em sua época, Eunice trabalhou junto a movimentos e lideranças indígenas e se dedicou a garantir demarcações de terras, indenizações e outras proteções a povos em vulnerabilidade desde a colonização portuguesa.
Eunice fez parte da fundação do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (IAMA), ONG que atuou até 2001 na defesa e autonomia dos povos indígenas. Foi voluntária da Comissão Pró-Índio. Na Constituinte, contribuiu para a criação dos artigos 231 e 232, que tratam dos direitos dos povos indígenas. Escreveu artigos e um livro. Tornou-se consultora do Banco Mundial e da ONU, participou de fóruns internacionais e debates na televisão.
“Ela foi mais que uma advogada. Considero Eunice uma verdadeira jurista”, disse Ailton Krenak em uma pré-entrevista por telefone. Depois, em conversa por videoconferência, o escritor, filósofo, ativista do movimento socioambiental e direitos indígenas e imortal da Academia Brasileira de Letras contou suas memórias de Eunice Paiva, “que agia como o Ministério Público antes de existir Ministério Público”; do trabalho com os companheiros indígenas e não-indígenas; e do momento que viveram naquela etapa final da ditadura militar e redemocratização.
Como o senhor conheceu Eunice Paiva?
Ailton Krenak: Nos anos 80, pairava ainda um clima de muita vigilância policial. A luta contra a tortura e para a soltura de presos políticos ainda estava acontecendo. E, admiravelmente, a nossa querida Eunice Paiva, no meio de todo esse enfrentamento contra a ditadura, arrumou tempo para ser voluntária da Comissão Pró-Índio, uma iniciativa de antropólogos e juristas para defender os direitos indígenas contra toda a violência institucional que estava implantada.
A nossa Comissão Pró-Índio assumiu vários enfrentamentos. Eu era um dos membros, junto com outras pessoas que lutaram, como o professor Dalmo Dallari e Carlos Frederico Marés, a professora Manuela Carneiro da Cunha, a professora Lux Vidal, com outros colegas da USP e PUC… Eram pessoas excepcionais, que arriscaram suas vidas pela defesa dos direitos humanos.
Foi nesse tempo que eu tive quase que a minha formação na área dos direitos. Eu trabalhava e convivia com eles em reuniões duas a três vezes por semana.
O que é interessante é que a minha relação, a minha convivência, com a doutora Eunice foi se tornando tão gentil que eu frequentei a casa dela em São Paulo e conheci o Marcelo e as meninas. Foi um tempo muito rico de afetos, de experiências, de convivência com a cultura, e uma ampliação dos meus horizontes também como pessoa, porque eu estava exilado do meu território Krenak em Minas Gerais, onde finalmente pude voltar a viver com a minha família.
Mas eu fiquei mais de 20 anos nessa rendição política, nesse exílio político, liderando o movimento indígena, que foi resultar na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que é esse movimento que tem hoje. Ele nasceu das nossas jornadas, onde a nossa querida Eunice Paiva, além dessas pessoas que eu mencionei, sempre esteve orientando a perspectiva jurídica do movimento indígena para que a gente não pisasse em bombas.
Como foi o trabalho da Eunice e dos outros aliados junto ao senhor e o movimento dos povos indígenas para conseguir garantias constitucionais e proteger direitos em meio à repressão?
Ailton Krenak: Não era um pequeno comitê. Era muita gente. Além de advogados e antropólogos, tinha engenheiros, geólogos, etc. A gente se constituiu em um coletivo muito amoroso, muito integrado. Não era uma burocracia. E a gente tinha muita afinidade uns com os outros.
Em uma ocasião, depois da campanha das Diretas Já, nos debruçamos sobre produzir uma proposta de capítulo dos indígenas na Constituição. O artigo 231 e 232 saíram dessa fornalha. Juristas e constitucionalistas, que conheciam a história das Constituições brasileiras, nos instruíam como evitar armadilhas. E a gente tentou evitá-las de toda maneira. Uma dessas armadilhas que tentamos evitar, aconselhados pelo Dalmo, pela Eunice, pelo Maré, e outros juristas, era que a gente não incluísse a questão relativa à autorização da mineração em terra indígena. Conseguimos bloquear isso. No texto da Constituição, a gente não abre a possibilidade de a mineração acontecer dentro dos territórios indígenas, e deixamos isso como alguma coisa que ia ser definida no futuro. E esse futuro sempre bate à nossa porta em diferentes formatos. Um deles é o Marco Temporal, que diz: “não demarca a terra para os índios e entra com o que quiser lá dentro”.
Era um balcão de assistência jurídica, literalmente. Além dos projetos de longa duração, como a Constituinte, tinha processos contra a emancipação, ação contra outras violências muito amplas contra o povo indígena… Esse balcão atendia qualquer demanda.
As lideranças indígenas apareciam nessas agendas quando estavam sendo ameaçadas, ou quando o seu território era invadido, ou uma hidrelétrica ia cair em cima da cabeça deles. E aí eram todos, desde o Mário Juruna, que se tornou deputado e que precisava de assistência jurídica para exercer o mandato, até o Marcos Terena, que foi junto comigo uma das lideranças que ergueu esse movimento indígena, Álvaro Tukano, o Idjarruri Karajá, o Domingos Veríssimo Terena, que era um membro do conselho da Comissão Pró-Índio, os nossos parentes Kaingang do Paraná, do Rio Grande do Sul, os Guarani de São Paulo…
Foi dessas experiências que se produziu também uma literatura sobre direitos indígenas. Você vai encontrar artigos da doutora Eunice Paiva debatendo os textos da Constituição e anteriores à Constituinte de 1988, discutindo outras questões relativas aos direitos dos povos indígenas na chave de direitos humanos.
Sobre os debates em televisão, em jornal e universidades como USP e PUC, participávamos com uma frequência bem perceptível. Naquele tempo, a TV Cultura tinha um programa, que acontecia à tarde, que convidava pessoas para discutir temas importantes. Não foi apenas uma vez que participei de debates lá e também de outras discussões, onde a presença da dona Eunice era tão importante que eu só estaria naquele debate junto com ela, porque eu ia fazer afirmações políticas que precisavam de garantia jurídica.
A gente assumia causas monumentais. A doutora Eunice participava dessas pautas todas. Eu acho que ela e os colegas daquela época expressavam um tipo de compreensão dos direitos humanos e da emergência da sociedade brasileira que hoje não se vê com essa dimensão. Acho que foi um período de grande mobilização da vida política brasileira, que hoje eu olho em perspectiva e não acredito que a gente virou um povo tão medíocre.
Vocês foram perseguidos pela ditadura? Marcelo Rubens Paiva conta em “Ainda Estou Aqui” que Eunice era sempre vigiada pelo regime.
Ailton Krenak: Nós vivemos muitas experiências de perseguição. Eu só fiquei sabendo quando abriram os arquivos do SNI (Sistema Nacional de Informações). Eles vigiavam até quando você pegava um ônibus na rodoviária, com quem se reunia, quando saia uma matéria em jornal, o que você estava falando. Guardavam as falas para poder usar contra nós depois.
E essa perseguição chegou, em alguns momentos, a beirar o pânico, como quando sobrevoaram com um helicóptero militar um lugar onde a gente estava reunido. Tinha todo tipo de baixaria. Eles queriam nos apavorar.
Qual o legado de Eunice Paiva para o direito indígena?
Ailton Krenak: Eunice é de uma expressão tão grande que é impossível contar a história do movimento indígena nos anos 70 e 80 sem fazer referência à contribuição dela, tanto do ponto de vista jurídico quanto do ponto de vista humanitário, de acolher, defender e encarar a ditadura para que esses povos pudessem finalmente inscrever na Constituição os seus direitos e se fazerem cidadãos. Creio que a nossa querida Eunice via a questão indígena como uma questão dos direitos humanos, não como uma coisa étnica. É assim que ela atuava.
Até a Constituição de 88, a gente não era cidadão, a gente não podia nem assinar uma ação contra o Estado. A gente tinha que ser acompanhado por juristas, como o Dalmo Dallari, como a Eunice Paiva, e outros. Eles assinaram ações contra o Estado em nosso nome, por nós. Eles assumiram o risco por nós. Eles confrontaram a arrogância do Estado brasileiro que tinha tutela exclusiva dos indígenas.
Antes de o Ministério Público existir, eles já exerciam isso que o Ministério Público veio a assumir como tarefa sua, que é a defesa dos direitos difusos e coletivos – a proteção do meio ambiente, dos indígenas e das pessoas que são consideradas juridicamente incapazes. Quando você vê alguém falando que o Ministério Público denunciou, entrou com ação, fez não sei o quê, a Eunice Paiva já fazia isso antes de o Ministério Público existir. Está bom?
Acho que ela tinha uma consciência muito grande de que existia o risco de os indígenas serem capturados por ideologias perigosas. Fosse a de ir para uma luta desigual, em que seríamos massacrados, ou mesmo que a gente fosse cooptado por um pensamento idiota de explorar as terras indígenas para ganhar dinheiro.
Fomos muito apoiados por essas pessoas boas, que ajudaram para que o movimento indígena alcançasse, em tão pouco tempo, a relevância que alcançou. Hoje a gente tem a Joenia Wapichana como presidente da Funai, a gente tem advogados e advogadas indígenas defendendo o direito do indígena no STF, admitidos em debates de alta relevância.
E temos uma ministra, a Sonia Guajajara. A gente não precisa ficar cantando muito isso, porque é uma situação precária. É um ministério que não tem todas as prerrogativas que os outros ministérios da grana têm. Ele é um ministério da minoria. Assim como as pastas dos Direitos Humanos e Meio Ambiente, são as políticas menores do Estado brasileiro. E os indígenas estão dentro dessas políticas menores do Estado brasileiro. Mas o que é importante é olhar que, dos anos 70 e 80 até agora, para quem ia desaparecer, com a ajuda de pessoas incríveis, esses indígenas conseguiram constituir um movimento que hoje tem repercussão internacional.
Eunice teve uma atuação internacional também, certo?
Ailton Krenak: Sim. Ela teve expressão nos fóruns internacionais que estavam produzindo a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas que finalmente existe e que o Brasil é um signatário, na Convenção 169 de Genebra… Ela atuava no direito internacional com a mesma desenvoltura que discutia as questões internas no Brasil.
O senhor esteve com Eunice Paiva antes de ela adoecer com Alzheimer?
Ailton Krenak: Enquanto eu convivi com ela, era lúcida e ativa. Eu só tive notícia de que Eunice estava com dificuldade de participar ativamente do convívio quando seus filhos deram notícia de que ela estava com a saúde debilitada. Mas ela já tinha vencido o bom combate dela, já tinha confrontado e condenado o Estado brasileiro. Ela é uma mulher vitoriosa. A família toda é. Também gosto muito do Marcelo e das meninas.
Eunice chegou a comentar alguma vez com o senhor como surgiu o interesse e a dedicação pelos direitos indígenas?
Ailton Krenak: Não precisava. Nós éramos uma geração de pessoas que entendia que a vida brasileira implicava luta, e nós todos estávamos na luta contra a ditadura. A família dela tinha sofrido uma violência enorme, ela não tinha que nos explicar o que estava fazendo ali. Ela era bem-vinda e pronto.
O que acha do lançamento do filme “Ainda Estou Aqui”?
Ailton Krenak: Eu acho que vão sair outros. Essas histórias nunca são completas. A gente vai conhecer cada vez mais. Eu acho muito bem-vindo, não sei por que ainda não tinham feito [risos]. Vai acontecer, ainda vai ter mais abordagens dessa história, talvez costurando ela com outras famílias, outras pessoas que também sofreram a mesma violência do Estado.