A hora é agora: Lula terá que decidir sobre Belo Monte

Texto: Helena Palmquist 

Está na mesa do novo governo a renovação da licença de operação da hidrelétrica que causou uma crise humanitária e ambiental em uma das regiões mais diversas da maior floresta tropical do planeta. Sua escolha determinará o legado do PT na Amazônia e o destino do rio Xingu

Em 22 de junho de 2010, o presidente Lula, então em seu segundo mandato, visitou Altamira, no Pará, e fez um discurso polêmico, até hoje lembrado na região. Lula defendeu a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que alagaria parte da cidade, afogaria ilhas, afetaria povos indígenas, secaria a Volta Grande do Xingu e expulsaria cerca de 55 mil pessoas de suas casas, parte delas de comunidades tradicionais da floresta. A licença prévia para a obra tinha sido expedida poucos meses antes, em fevereiro daquele ano, depois de intensos conflitos com ambientalistas, com os movimentos sociais da região e com lideranças indígenas. “Eu sei que muita gente bem-intencionada não quer que se repitam os erros cometidos neste país, ao longo da construção de hidrelétricas”, disse Lula. “Nós nunca mais vamos querer uma hidrelétrica que cometa o crime de insanidade que foi Balbina, no estado do Amazonas. Nós não queremos repetir Tucuruí. Nós queremos fazer alguma coisa nova.”

Hoje, quase 13 anos depois daquele discurso, Lula está no início de seu terceiro mandato e há fatos e provas abundantes para afirmar: Belo Monte é um “crime de insanidade”. Dados inéditos obtidos por SUMAÚMA mostram que, em 2019 e 2020, em quatro terras indígenas atingidas pela usina, o desmatamento foi maior do que em todos os outros 311 territórios da Amazônia. Uma geração de crianças da floresta, que tiveram suas ilhas ou casas nos beiradões do Xingu queimadas e afogadas, virou adolescente na periferia de Altamira, que se tornou uma das cidades mais violentas do Brasil, dominada pelo crime organizado e pelas disputas sangrentas entre facções. À espera de reassentamento para recompor o modo de vida, suas famílias anseiam por um território ribeirinho que hoje está sob ataque de políticos associados à destruição da floresta e de grileiros e fazendeiros locais. Parte delas está confinada nos chamados RUCs (Reassentamentos Urbanos Coletivos), numa rotina de falta d’água e contas de energia que não conseguem pagar. Neste momento, a Volta Grande do Xingu, 130 quilômetros de uma das mais biodiversas regiões da Amazônia e lar de três povos indígenas, comunidades ribeirinhas e camponesas, está secando, numa catástrofe humanitária e ambiental.

Mais de sete anos depois do início da operação, apenas 13 das 47 condicionantes foram integralmente concluídas, segundo parecer técnico do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) analisado pelo  Instituto Socioambiental (ISA). As condicionantes, como o nome diz, deveriam condicionar as licenças para as obras e para a operação da usina. Seu descumprimento aponta para uma violação explícita das leis.

Pelo menos 29 ações do Ministério Público Federal apontaram  ilegalidades no processo de construção e operação da hidrelétrica.  Em 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que o governo federal havia desrespeitado os direitos indígenas ao não realizar as consultas prévias, livres e informadas previstas na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Belo Monte se tornou um nome internacionalmente maldito.

As usinas de Balbina e Tucuruí, citadas por Lula, foram construídas na Amazônia pela ditadura empresarial-militar (1964-1985) e se tornaram exemplos históricos de destruição do meio ambiente e também de vidas humanas e não humanas. Belo Monte foi construída pelo governo mais à esquerda da história da democracia brasileira, eleito com o apoio dos movimentos de base da região de Altamira. A hidrelétrica, no Xingu, acabou por repetir violências e danos causados pela usina de Tucuruí e também se mostrou deficitária como Balbina, já que, como os cientistas haviam alertado repetidamente, a água do rio Xingu diminui durante os meses de seca.

Parte do impacto das denúncias de corrupção que envolvem os governos do PT foi amenizada pelos abusos e ilegalidades da Operação Lava Jato e pela magistral volta por cima de Lula, que depois de ter ficado 580 dias preso se elegeu para o terceiro mandato com o apoio de uma frente ampla. Belo Monte não. Belo Monte permanece incontornável. A aposta de que poderia ser considerada “fato consumado” e com o tempo esquecida não se concretizou. Ao contrário. Os impactos sobre a floresta e seus povos estão longe de acabar. Lula só não foi confrontado muito mais duramente na campanha eleitoral porque havia consenso, da esquerda à direita, de que era necessário vencer o fascismo representado pelo extremista de direita Jair Bolsonaro.

Agora, Lula tem diante de si uma escolha: cabe a seu governo renovar a licença de operação da hidrelétrica, vencida desde novembro de 2021.

Lula 3 reproduz, em parte, a configuração de Lula 2. Em 2008, Marina Silva, então ministra do Meio Ambiente, deixou o governo e, no ano seguinte, o PT. Fora do cargo, Marina defendeu o adiamento do leilão da hidrelétrica e questionou a viabilidade social, ambiental e econômica do projeto. “Belo Monte está na agenda do país há 20 anos, faz 20 anos que a índia Tuíre botou o facão no pescoço do diretor da Eletrobras. Lamentavelmente, 20 anos se passaram e a licença foi dada sem que os problemas de Belo Monte tivessem sido resolvidos, em relação aos impactos sociais, aos impactos ambientais e ao processo que afeta a terra das comunidades indígenas. […] E Belo Monte, para além dos problemas sociais e ambientais, acabou revelando um outro problema, que é a questão da própria viabilidade econômica, porque hoje é um empreendimento praticamente subsidiado”, criticou ela em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em junho de 2010.

Hoje, Marina Silva é mais uma vez ministra do Meio Ambiente do governo Lula. As semelhanças do contexto, porém, acabam aí. Não por acaso o nome da pasta foi alterado para Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Se no segundo mandato Lula se tornou o presidente pop no mundo por causa de seus programas sociais de redução da pobreza, agora, num planeta em que a crise climática virou uma preocupação central até mesmo em espaços conservadores como o Fórum Econômico Mundial, seu governo será julgado pelo que acontecerá na Amazônia. O nome “Belo Monte” ressoa no planeta como aquilo que de fato é: um desastre ambiental e humano. E nenhuma das várias declarações em defesa de Belo Monte feitas por Lula e políticos do PT será capaz de apagar aquela que não é uma pedra no meio do seu caminho, e sim toneladas de aço e concreto no meio de um dos rios mais majestosos e com maior biodiversidade da Amazônia.

Cabe ao Ibama, órgão vinculado ao ministério comandado por Marina Silva, a decisão técnica sobre a renovação da licença de operação da hidrelétrica e sobre o que será feito em relação aos impactos causados por sua construção. A decisão política, porém, será de Lula.

Ao assumir o terceiro mandato na Presidência do Brasil, Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto ao lado do cacique Raoni Metuktire. Além de ser uma das maiores lideranças indígenas da história do país, Raoni foi uma das vozes mais importantes contra a construção da usina de Belo Monte no rio Xingu. A presença de Raoni entre os representantes do povo brasileiro que passaram a faixa a Lula no dia 1º de janeiro de 2023 emocionou a muitos e pode ter surpreendido alguns. Afinal, por causa de Belo Monte, os dois grandes líderes brasileiros estiveram em lados opostos por muitos anos.

Dias antes da posse, Raoni e Lula se reuniram. Naquele momento foi anunciado o nome de Joenia Wapichana, apoiada por Raoni, para a presidência da Funai (agora Fundação Nacional dos Povos Indígenas). O tema Belo Monte esteve muito presente na reunião. Raoni, mais uma vez, advertiu Lula da destruição provocada pela usina no Xingu, um dos principais tributários da bacia amazônica, rio que é parte da vida do povo Kayapó e de dezenas de outros grupos indígenas que vivem em suas margens, desde as nascentes, em Mato Grosso, até a foz, na região de Porto de Moz, no Pará.

Belo Monte era um projeto da ditadura empresarial-militar, batizado então de Kararaô, um grito de guerra do povo Kayapó. Em fevereiro de 1989, um encontro de povos indígenas do Xingu em Altamira ficou marcado por uma cena que correu o mundo: a liderança Tuíre Kayapó encostou um facão no rosto do então diretor da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes, homem de José Sarney que atravessou décadas no setor elétrico. Depois do episódio com Tuíre, a Eletronorte decidiu abrir mão do nome Kararaô e a hidrelétrica virou Belo Monte – o projeto só seria retomado no fim dos anos 1990, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Dessa vez, coube ao Ministério Público Federal (MPF) sepultar judicialmente a usina, apontando várias irregularidades nos estudos de impacto e a ausência de consulta aos povos indígenas.

    Imagem: MOMENTO EM QUE A INDÍGENA TUÍRE KAYAPÓ ENCOSTA O FACÃO NO ROSTO DO ENTÃO DIRETOR DA ELETRONORTE, JOSÉ ANTÔNIO MUNIZ LOPES, EM PROTESTO CONTRA A CONSTRUÇÃO DA HIDRELÉTRICA DE KARARAÔ, HOJE BELO MONTE. FOTO: PROTÁSIO NENE/AE (21/02/1989)

    Quando Lula se elegeu para o primeiro mandato, tanto movimentos sociais quanto indígenas do Xingu comemoraram, pois achavam que o caso estava encerrado. Mas já em 2005 o presidente garantiu a aprovação em tempo recorde de um decreto legislativo que permitiu o licenciamento das obras. Belo Monte foi então licenciada e leiloada em 2010, em seu segundo mandato, depois de uma batalha judicial em que saíram derrotados o MPF, os indígenas, os ribeirinhos e os movimentos sociais do Xingu. Naquele momento, grande parte das elites brasileiras e também da imprensa era favorável à usina, considerada uma “magistral obra de engenharia”. Tanto que deixaram passar um leilão arquitetado por Delfim Netto, ex-ministro da ditadura, em que houve abundância de acontecimentos estranhos antes, durante e depois de sua realização e do qual saiu vencedor o consórcio de empresas chamado Norte Energia.

      Imagem: UMA DAS PRIMEIRAS IMAGENS DA DESTRUIÇÃO PRODUZIDA PELA ABERTURA DO CANAL DA HIDRELÉTRICA DE BELO MONTE. O REGISTRO É DE 2012. FOTO: DANIEL BELTRÁ/GREENPEACE

      Decidida e leiloada no governo Lula, a hidrelétrica de Belo Monte foi construída nos mandatos de sua sucessora, Dilma Rousseff, por um conjunto de empreiteiras que mais tarde seria alvo da Operação Lava Jato. Em 2015, a licença de operação foi assinada e já naquele ano, como mais tarde mostraria o Atlas da Violência, Altamira se tornou a cidade com mais de 100 mil habitantes mais violenta do Brasil. Desde então, o município apresenta alguns dos piores índices do país. Em 2019, foi palco do segundo maior massacre da história do sistema prisional brasileiro, com 62 mortos. Em 2020, pouco antes de os primeiros casos de covid-19 alcançarem o Pará, testemunhou uma série de suicídios entre aqueles que se tornaram adolescentes em uma cidade brutalmente transfigurada. Especialistas em saúde mental conectaram os suicídios aos impactos provocados pela construção da hidrelétrica.

      Belo Monte, paradoxalmente, uniu dois governos ideologicamente opostos. Em 2016, pouco antes de ser arrancada do poder por um impeachment, a petista Dilma Rousseff desembarcou na região para inaugurar a hidrelétrica. Em 2019, o extremista de direita Jair Bolsonaro terminou de inaugurar a usina.

      O principal projeto do governo Bolsonaro era o avanço sobre as áreas protegidas da Amazônia. Os resultados se tornaram evidentes com o genocídio do povo Yanomami e os recordes de fogo e desmatamento, com mais de 2 bilhões de árvores mortas. Antes mesmo de Bolsonaro, porém, Belo Monte já tinha transformado a região do Xingu na campeã absoluta do desmatamento na Amazônia: Altamira esteve no topo do ranking em sete dos dez anos do período que vai de 2012 a 2021. Com Bolsonaro, a destruição se agravou ainda mais.

      A usina instalada no rio Xingu acumula um passivo correspondente a seu gigantismo em impactos não mensurados, em danos imprevistos, em condicionantes não cumpridas: a dívida com os povos da região e com a própria floresta só cresce.

      Ao tratar o rio como sua caixa-d’água particular, de onde pode tirar ou colocar água conforme suas necessidades, Belo Monte está secando os 130 quilômetros da Volta Grande do Xingu, lar de milhares de espécies, algumas delas endêmicas, o que significa que só existem lá e, se forem extintas, desaparecerão do planeta.

        Imagem: INFOGRAFÍA: RODOLFO ALMEIDA/SUMAÚMA

        Desde que a licença de Belo Monte expirou, em novembro de 2021, os técnicos do Ibama estudam sua renovação. Não há um prazo determinado para as análises. Segundo a legislação, a usina pode continuar funcionando porque solicitou a renovação com antecedência. Mas, a cada mês que passa, a fatura ambiental e humana aumenta. E aumenta na conta de Lula e do PT.

        A decisão sobre a renovação da licença de operação pode ser uma janela de oportunidade única para um governo que assume o poder comprometido com a sustentabilidade ambiental e com o combate à miséria. É uma chance também de Lula mostrar ao mundo a real dimensão de seu compromisso com a Amazônia, a crise climática e o meio ambiente. É, acima de tudo, uma escolha sobre qual será a marca de seu legado em um planeta em catástrofe climática.

        Lula, agora, tem um encontro marcado – e incontornável – com Belo Monte.

        Para ajudar o presidente a tomar sua decisão, a equipe de SUMAÚMA visitou as comunidades mais isoladas, brasileiros que não podem mais navegar pelo Xingu e estão sem acesso a estradas, vivendo na penúria e desassistidos. Nossa equipe de reportagem também foi a primeira a visitar os locais onde a Norte Energia quer construir as “soleiras” – sete barragens no rio, na tentativa de evitar ter que devolver parte da água desviada da região da Volta Grande do Xingu. Conversamos com pescadores que vivem há sete anos sem conseguir sustentar suas famílias com a pesca, devido aos danos à fauna aquática que só foram reconhecidos pelo Ibama em 2019. Também percorremos as ruas dos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs), bairros distantes do centro construídos pela Norte Energia em que foram jogadas as famílias expulsas pela hidrelétrica, submetidas a uma rotina de falta d’água, contas de luz impagáveis e violência extrema.

          Imagem: ODELITA HONORATO É FOTOGRAFADA EM 2 DE MARÇO DESTE ANO PERTO DE SUA CASA NO RUC LARANJEIRAS, UM DOS BAIRROS CONSTRUÍDOS EM ALTAMIRA PELA NORTE ENERGIA PARA COLOCAR FAMÍLIAS EXPULSAS POR BELO MONTE: ELA VOTOU EM LULA NA ESPERANÇA DE QUE ELE FAÇA POLÍTICAS PÚBLICAS PARA SALVAR A JUVENTUDE DESTRUÍDA PELA VIOLÊNCIA DE ALTAMIRA. FOTO: SOLL SOUSA/SUMAÚMA

          Em comum, além das reivindicações e do sofrimento, todas as pessoas com quem conversamos na região disseram ter votado em Lula em 2022. Apesar dos desastres provocados por Belo Monte, o governo de Jair Bolsonaro produziu tantas mortes que Lula era efetivamente, para muitos eleitores, a “salvação do país”. Esses eleitores dizem confiar no presidente para fazer as mudanças que são necessárias para interromper o ciclo de empobrecimento e de destruição socioambiental que Belo Monte inaugurou no Xingu. “Eu diria para ele [Lula] olhar para a classe humilde, para os nossos jovens. Temos muitos jovens aqui perdendo a vida para o tráfico”, diz Odelita Honorato, sentada na sala de sua casa, em em um dos RUCs construídos pela Norte Energia. “O que a gente espera é ele arrumar uma forma de uma condição melhor pra gente trabalhar e sobreviver aqui”, reivindica José Bastos, um maranhense que foi morar nas margens da Volta Grande do Xingu atraído pela facilidade de plantar e levar sua produção de barco para vendê-la nos centros urbanos mais próximos, mas agora não tem mais como navegar nem estradas para percorrer. Ele também votou em Lula.

          Vivendo entre duas ilhas na Volta Grande, que batizou de Ilha do Amor 1 e Ilha do Amor 2, o pescador Sebastião Bezerra Lima conta que a vida ficou muito difícil depois que Belo Monte desviou 70% das águas para movimentar suas turbinas: “As coisas aqui não tão mais que nem eram, de jeito nenhum. Nem o peixe, nem o ribeirinho, nem o pescador, nem o indígena, não compreendem mais o rio. Antigamente, o pescador, o ribeirinho, compreendia o rio, a vazante, a enchente, tudo ele compreendia e agora não mais. A vida do pescador mudou, as frutas caem no seco, a água não chega no igapó, hoje em dia o peixe não tá se alimentando, algum peixe que ainda tem é magro como um facão. Perdi muita coisa. O pescador, o indígena, o ribeirinho, perdeu muita coisa”. Sebastião está ao lado de uma área que deveria estar alagando desde novembro do ano passado, para a reprodução dos peixes, mas permanecia seca na terceira semana de janeiro. Ainda assim, o pescador sem rio e sem peixes confia em Lula: “Confio. Se ele reparar pra gente, o que a gente pede é que ele repare. Eu confio de coração. Ele ficou para ajudar os pequenos. E eu sou pequeno, eu sou pequenininho”.

            Imagem: ONDE ANTES HAVIA UM RIO, AGORA HÁ UM LEITO SECO. SEBASTIÃO BEZERRA LIMA USA AS RÉGUAS PARA MONITORAR A ÁGUA QUE FALTA PARA OS PEIXES SE REPRODUZIREM. FOTO DE JANEIRO DE 2023: SOLL SOUSA/SUMAÚMA

            O que está em jogo na renovação da licença de operação

            A licença de operação (LO) de Belo Monte foi concedida pelo Ibama no dia 24 de novembro de 2015. Essa data marca o fechamento definitivo da barragem de Pimental, que, no dizer dos ribeirinhos do Xingu, cortou o rio. A usina é chamada de complexo hidrelétrico porque o projeto de engenharia inclui duas barragens, dois reservatórios e duas casas de força. Pimental, a barragem principal, represa parte da vazão do Xingu na região em frente de Altamira e desvia outra parte para um segundo reservatório, um canal artificial que leva as águas que deveriam correr pela Volta Grande do Xingu para a casa de força principal, onde movimentam as turbinas e geram energia. Do ponto de vista dos moradores da Volta Grande, nada mais exato do que dizer que Pimental cortou o rio, porque são eles que ficam sem as águas.

            Com a decisão sobre a renovação da licença de operação na mesa, o governo federal poderá finalmente respeitar os pareceres técnicos, levar em consideração as dezenas de cientistas que acompanham os impactos da implantação da usina, evitar as pressões políticas e econômicas e atender aos pedidos dos eleitores do Xingu, corrigindo os inúmeros problemas provocados pela hidrelétrica e também transformando em realidade o discurso sobre a proteção da Amazônia.

            “A gente não pode mais brincar com questões ambientais, muito menos com questões socioambientais. A gente fala o tempo todo do papel que essas comunidades tradicionais têm na conservação ambiental, a importância que elas têm para o conhecimento do que ocorre na região, para a geração de conhecimento e para o compartilhamento de recursos naturais, para formas de viver que sejam sustentáveis para o ecossistema amazônico. Mas tudo que temos feito são intervenções que põem isso em xeque, que desestabilizam completamente o ecossistema e a vida dessas comunidades. Já passou da hora, né, de a gente ter uma nova estratégia para esses empreendimentos na Amazônia”, alerta Jansen Zuanon, um dos maiores especialistas em ictiologia amazônica, professor aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e integrante de um observatório que reúne pesquisadores e moradores para monitorar os danos causados por Belo Monte no Xingu.

            André Sawakuchi, geólogo, professor da Universidade de São Paulo (USP) e também integrante do observatório de pesquisadores, alerta sobre a necessidade de uma compreensão mais atual do desmatamento para que o Brasil esteja afinado com o debate global sobre a crise climática:

            “A destruição das florestas aluviais também é um tipo de desmatamento. O que a gente tem que pesar nessa discussão sobre Belo Monte é quanto mais de biodiversidade vamos estar dispostos a sacrificar para gerar energia. Vale a pena a destruição de todos esses ecossistemas e das florestas, sem falar na perda de culturas ribeirinhas e indígenas? A Volta Grande ainda tem solução, ainda poderemos salvar se garantirmos em primeiro lugar a vida dos ecossistemas e das comunidades. Mas precisamos decidir o que vamos sacrificar”.

            Pela legislação brasileira, a licença de operação deveria ser concedida quando as condicionantes das licenças anteriores – prévia e de instalação – estivessem totalmente cumpridas. Condicionantes, como o nome diz, são o que condiciona. No caso de Belo Monte, elas não condicionaram. Tanto o MPF quanto organizações da sociedade civil, como o Instituto Socioambiental (ISA), afirmam que até hoje há pendências das licenças anteriores. O descumprimento das condicionantes provoca danos trágicos na vida das pessoas e nos ecossistemas da região. As falhas no licenciamento, deliberadas ou não, foram cruciais para fazer com que a região de Altamira fosse a mais desmatada da Amazônia na última década.

            Ao analisar o último parecer técnico do Ibama, emitido no fim de junho de 2022, o ISA fez uma avaliação do status de atendimento de 47 condicionantes socioambientais da licença de operação. Os dados, aos quais SUMAÚMA teve acesso com exclusividade, mostram que dessas obrigações o Ibama considera que a Norte Energia atendeu apenas 13.

            Em resumo: depois de todas as licenças concedidas e de sete anos de operação da usina, apenas 13 das 47 medidas que deveriam ter sido cumpridas na íntegra foram efetivamente concluídas. Outras 21 ainda estão sendo implementadas, oito foram parcialmente atendidas e há duas condicionantes que nem sequer começaram a ser executadas. Além disso, nove condicionantes ainda não foram analisadas, entre as quais aquela que provavelmente é o maior dilema do complexo hidrelétrico: a partilha da água do Xingu, para garantir a vida dos ecossistemas da Volta Grande.

            Entre as condicionantes consideradas não atendidas e com pendências, segundo o parecer do Ibama, estão a do reassentamento das populações atingidas, a do saneamento básico de Altamira e a das medidas de compensação e mitigação para populações tradicionais da região devido à perda da atividade da pesca. Essas condicionantes interferem diretamente na qualidade de vida de milhares de moradores da região.

            Emitir as licenças de Belo Monte sem que as condicionantes tenham sido cumpridas significa uma violação explícita da legislação, com graves consequências para a floresta, seus povos e os moradores de Altamira. Com a decisão sobre a renovação da licença de operação, Lula e Marina Silva vão mostrar se o governo continuará aceitando o descumprimento da lei e permitindo graves danos ambientais e humanos na Amazônia – ou se as condicionantes finalmente vão condicionar.

            Em nota enviada a SUMAÚMA, a Norte Energia afirmou que “não há condicionante não cumprida. As condicionantes estão atendidas ou em atendimento. Esse acompanhamento é feito regularmente pelo órgão licenciador, o Ibama”. O Ibama, por sua vez, afirmou à reportagem que “há obrigações pendentes, em execução e já cumpridas pela Norte Energia”. Destacou também que “foram solicitadas informações complementares” à empresa e “feitas recomendações para adequação dos empreendimentos às diretrizes do licenciamento”. Para uma manifestação conclusiva sobre o atendimento das condicionantes da licença de operação, o Ibama afirma estar esperando a finalização das análises da equipe técnica.

               Imagem: SISTEMA DE TRANSPOSIÇÃO EM VITÓRIA DO XINGU, NA USINA HIDRELÉTRICA DE BELO MONTE. FOTO DE JANEIRO DE 2023: SOLL SOUSA/SUMAÚMA

              Pescadores estão há sete anos sem peixes – e sem energia

              É fácil entender por que a pesca era uma das principais atividades econômicas nos municípios atingidos por Belo Monte – Altamira, Vitória do Xingu, Senador José Porfírio, Brasil Novo e Anapu. “O Xingu era nossa mãe”, dizem muitos pescadores da região sempre que precisam falar sobre como a usina afetou a vida deles. Agora não mais. O impacto das barragens sobre a pesca foi negado por muitos anos pelas autoridades e pela Norte Energia com base em metodologias de mensuração muito questionadas por cientistas. Finalmente, esse impacto foi reconhecido oficialmente pelo Ibama em 2019.

                Imagem: JANEIRO DE 2023: PESCADORES EM FILA NO CENTRO DE ALTAMIRA PARA O PROGRAMA DE “REPARAÇÃO” DA NORTE ENERGIA: 20 MIL REAIS POR SETE ANOS DE PERDAS. FOTO: SOLL SOUSA/SUMAÚMA
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                Rodrigo Martins

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