Primeira gramática indígena do Brasil é na língua Wapichana e passa a ser usada em salas de aula

Texto: Caíque Rodrigues/ site g1 RR — Boa Vista

O Brasil ganhou a primeira gramática indígena do país nessa terça-feira (24), em Roraima. O livro pedagógico é na língua Wapichana, será disponibilizado nas escolas de ensino fundamental e marca um feito inédito na educação brasileira. Resultado de uma década de pesquisa, a obra assegura a preservação da cultura, saberes e tradições do povo indígena.

Intitulada Bayda’aptan Paradakary Ai Chapkinhau Wapichan Paradan Dia’an (em português: Gramática pedagógica da Língua Wapichana), a obra faz parte de uma nova coleção que inclui trabalhos nas línguas indígenas dos povos Ikpeng, no Xingu (MT), Kawaiwete (MT), Karajá (GO, MT, PA, TO), Paresi-Haliti (MT) e que ainda serão lançados.

Produzida com consultoria de professores, incluindo da língua Wapichana, a gramática agora passa a fazer parte dos livros oficiais do Ministério da Educação. O conteúdo inclui atividades, ilustrações e exercícios. O trabalho foi lançado nesta terça-feira (24) em uma cerimônia no malocão da comunidade Tabalascada, no município do Cantá, interior de Roraima.

O livro foi organizado pelo pelo Museu do Índio, que é o órgão científico-cultural da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). O trabalho tem parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

“É a primeira gramática indígena. Existem dicionários, por exemplo. Temos plataformas onde é possível baixar dicionários multimídia e ouvir áudios das línguas. No entanto, as escolas precisam de material didático específico, pedagógico, diferenciado e intercultural. Valorizar a língua é valorizar o povo”.

— explicou a diretora do Museu do Índio (que em breve se chamará Museu Nacional dos Povos Indígenas), Fernanda Kaingáng.

Seguindo o formato pedagógico do Ministério da Educação (MEC), a obra traz na capa uma ilustração do buriti — fruto de uma árvore típica do lavrado roraimense.

O livro começou a ser feito em 2013 e foi concluído em 2023 — 10 anos de produção. Com 300 páginas, é inteiramente escrito na língua Wapichana e apresenta desenhos que retratam e exemplificam o cotidiano da comunidade. O intuito é preservar a língua materna e as tradições dos povos originários.

A presidente da Funai, Joenia Wapichana — que é do povo a quem esse livro é destinado –, relembrou que a Unesco decretou que esta é a “Década Internacional das Línguas Indígenas”, destacando que este é um dos trabalhos feitos para manter o dialeto originário vivo.

“É importante valorizar o trabalho que vem sendo desenvolvido também por meio de registros feitos por pesquisadores e professores indígenas, assegurando que as nossas histórias, contos e lendas sejam preservados para as futuras gerações. Daqui a 50 anos, as pessoas ainda poderão ler essas histórias graças a esses registros”, disse.

A cerimônia oficial de lançamento da gramática contou com o tradicional dança parixara dos povos Wapichana e Macuxi, de um almoço tradicional à base de damorida — um caldo feito com pimentas, tucupi, peixe ou caça e folhas — além do caxiri, bebida também tradicional.

‘Material didático respeitoso e tradicional’

No lançamento, vários exemplares da gramática pedagógica Wapichana foi entregue para professores de ensino básico de comunidades Wapichana. Um deles foi Odamir de Oliveira, de 65 anos, da comunidade da Malacacheta. Conhecido como “Xaburu” no idioma originário, ele é da coordenação geral dos professores de língua materna Wapichana. Para ele, o livro foi um presente.

“É fundamental [a gramática] para as escolas, já que, muitas vezes, nossa língua era apenas falada. Só começamos a trabalhar com a escrita há cerca de 80 anos, e agora estamos avançando. Já temos nosso material, nossas gravações, e até um dicionário na língua, com a primeira e a segunda edições finalizadas. Agora essa gramática vem para ser um material didático, respeitoso e tradicional”, disse o professor ao g1.

Ele também teve um papel importante na confecção da gramática, já que incentivou professores e ajudou na criação do livro. Agora, está empolgado para usar o conteúdo nas aulas com seus alunos.

“Quem vai se beneficiar com esse trabalho são os profissionais, as comunidades e os povos que têm se dedicado a valorizar o uso e a preservação de suas línguas”, avaliou.

Consultoria e sabedoria indígena

Professores da língua materna indígena trabalham diariamente para manter viva a tradição nas escolas Wapichana. Para montar o conteúdo do livro, esses profissionais foram constantemente consultados. Uma deles foi a professora Benedita André da Silva, da comunidade Tabalascada.

Ela tem como primeira língua o Wapichana e, quando o livro começou a ser feito, pouco falava português. Benedita destacou o poder do idioma materno nas aulas e comemora que hoje há um material didático que ela aprendeu quando ainda era bebê.

“Não foi um processo fácil. Eu, como falante da língua Wapichana, tinha dificuldade com o português na época. Nós realizávamos encontros com os professores de língua ao longo do ano. Esses encontros aconteciam em diversas comunidades. No final do ano, íamos para Boa Vista para nos reunirmos com linguistas que nos ajudaram nesse processo”, contou a professora.

Para ela, ter o livro finalmente em mãos depois de 10 anos de trabalho é o resultado bonito de uma luta para manter viva a força dos povos originários. Ela conta que até cogitou fazer um livro que misturasse português com Wapichana, mas que isso resultaria em uma valorização à língua portuguesa, o que não é a intenção.

“O livro é todo escrito em Wapichana, pensado para os professores e falantes da língua. Nossa intenção era fortalecer o uso e o ensino da língua, porque, se fizéssemos em português junto com o Wapichana, os alunos tenderiam a focar mais no português e não valorizariam tanto o Wapichana”, explicou Benedita.

“Agora, as escolas já receberam esses livros, e isso tem sido muito positivo. Ele ajuda bastante quem quer aprender a ler e a escrever em Wapichana. Também tem sido de grande auxílio para os novos professores, especialmente os jovens que estão começando agora”, frisou.

Valorizar a língua é valorizar o povo

A diretora do Museu do Índio Fernanda Kaingáng acompanhou o lançamento e reforçou que o trabalho envolve a preservação do patrimônio cultural dos povos indígenas, especialmente na área linguística.

A língua Wapichana foi a primeiro a receber uma gramática pois a prioridade foi dada para povos indígenas transfronteiriços (Roraima faz fronteira com a Venezuela e Guiana).

Atualmente, existem 274 línguas indígenas faladas no Brasil, muitas delas em risco de extinção e a ideia é ampliar este trabalho para outras comunidades. Fernanda Kaingáng citou o próprio povo para exemplificar.

“Eu mesma sou do povo Kaingang, que conta com cerca de 60 mil pessoas, mas apenas 20 mil falam nossa língua, que está em processo de desaparecimento. Preservar esse patrimônio cultural é fundamental. Essa missão faz parte do trabalho do museu”.

“Estamos celebrando agora o resultado de 10 anos de esforços, envolvendo educadores, linguistas e pesquisadores indígenas, com protagonismo dos próprios povos indígenas. São 15 mil pessoas que agora têm um material didático próprio”, disse a diretora ao g1.

A diretora de políticas de educação escolar indígena do Ministério da Educação, Rosilene Tuxá, avaliou que o lançamento da primeira gramática indígena em Roraima também é como um pontapé para incluir nas políticas do MEC as línguas maternas indígenas do Brasil.

“Hoje, o MEC tem uma política muito forte de letramento, numeramento e produção de material didático específico, feito pelos próprios professores indígenas, com base na sua perspectiva e experiência. Isso inclui, principalmente, a produção de materiais nas línguas indígenas”.

Segundo ela, o MEC tem investido na formação de professores e na produção de materiais didáticos para todos os povos indígenas, em todos os 27 estados brasileiros.

“Essa política está se tornando cada vez mais robusta, e a ideia é, também, garantir que materiais já produzidos, como essa gramática, cheguem às escolas em quantidades suficientes para atender às necessidades dos alunos”, disse ao g1.

Exemplares da Gramática Pedagógica já foram distribuídos às escolas Wapichana com o apoio da Coordenação Regional da Funai em Roraima. O material também está disponível no site do Museu do Índio.

 

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Rodrigo Martins

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