TEKOA SAPUKAI

Texto: Kerolen Nascimento Monteiro, Vanessa Garcia Galvão (Pedagogia, FEBF-UERJ) e Rafaela Souza Palmeira (História-UERJ), bolsistas (NEPIIE-FEBF). Colaboração de Jaxuca, professora Guarani, membra da comunidade Sapukai, a partir de entrevista realizada no dia 03 de abril de 2022, por plataforma digital.

TEKOA SAPUKAI

Autodenominação: Mbya, Guarani

Onde estão no Rio de Janeiro: Angra dos Reis, região da Costa Verde, no Rio de Janeiro

Situação fundiária: 2128 hectares demarcados.1

Quantos são na aldeia: Aproximadamente 320 indígenas.

Família linguística: O Guarani faz parte da família linguística Tupi-Guarani.

Fotos (Aldeia Sapukai)  autoria de Laura Lacerda (2022) e cedidas ao Opierj

A presença dos povos Indígenas no Rio de Janeiro

No ano de 1500, o estado do Rio de Janeiro era habitado por diversas nações indígenas. Os Tupinambá moravam em aldeias que estavam distribuídas em todo o litoral. Os Goiatacá estavam presentes em vastas planícies do Norte Fluminense. Os Goianá se localizavam em Angra dos Reis e Paraty. Os Guarulho viviam na Serra dos Órgãos. No Vale do Paraíba estavam espalhados os povos Puri, Coroado e Coropó. Sem dúvida, existia uma grande diversidade de povos indígenas no Rio de Janeiro, cada povo possuía suas crenças, sua arte, seus saberes e falava, ao menos, 20 línguas diferentes.

No entanto, mais tarde, com a exploração do ouro em Minas Gerais, no século XVIII, e as fazendas de café que chegaram ao Vale do Paraíba, no século XIX, os povos indígenas do Rio de Janeiro foram liquidados. Somente no fim da década de 1940, o Rio voltou a ser habitado por povos indígenas. Eram os povos Guarani.

O Povo Guarani vive em cinco países da América do Sul: Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Bolívia. De acordo com o censo de 2010, no Brasil existem cerca de 67.523 guaranis, habitando, principalmente, as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Sendo, dessa maneira, uma das maiores populações indígenas do Brasil e do continente Sul-Americano. 

Os Guarani possuem uma cultura muito parecida e muitos grupos falam o mesmo idioma. No entanto, cabe destacar que eles se autodenominam de distintas formas, conforme a região em que habitam e o grupo familiar ao qual pertencem. A população que vive no Rio de Janeiro é, em sua maioria, Mybá, calculada em mais de 700 indivíduos, distribuídos, atualmente, em seis aldeias, nos municípios de Angra dos Reis, Paraty e Niterói.

Com a característica de ser um povo circulante, eles sempre possuíram muitas aldeias, mas essa dinâmica não deve ser confundida com o nomadismo. Algo interessante de se destacar também é o fato de que os Guarani sempre conheceram as plantas medicinais. Nessas ervas, estão os segredos para a saúde do corpo e muitas são cultivadas até hoje. 

Para eles, a água é sinônimo de saúde e energia, por isso, suas terras tradicionais costumam ficar perto da água do rio ou do mar. Da mesma forma, a mata é sinônimo de saúde e educação corporal.  Alguns animais encontrados na mata são sagrados, sendo reproduzidos em artesanato de madeira.

A cosmovisão do Guarani está ligada com a conexão entre a terra, os seres Guarani e as divindades. Através do canto-dança, conseguimos essa conexão. Desde muito tempo atrás, os Guarani conseguem manipular o solo. Uma das plantas que eles consideram mais sagradas é o milho ou awatchí, que serve como alimento. Quando se tem uma boa colheita, é feito o batismo tradicional, o Nhemongarai: nele, as crianças recebem o seu nome Guarani. (MARTINS, D. ; MOREIRA, H., 2018, p. 20)

Ao falar sobre os povos originários do Brasil, é necessário que façamos uma reflexão acerca de que existem muitos conflitos entre latifundiários e indígenas, mesmo em terras demarcadas. Apesar das políticas de extermínio e perseguições culturais e físicas, os Guarani permanecem mantendo viva sua espiritualidade, sua voz, sua língua, seus costumes e tradições. São povos guerreiros, donos de uma imensa riqueza cultural, que resistem, que lutam.

Os Mybá constituem, atualmente, o que podemos chamar de um dos exemplos mais bem-sucedidos de preservação da identidade. O Mybá muda, mas não desaparece. Muda para não desaparecer. Quinhentos anos depois, os Guarani resistem. Tem índio no Rio de Janeiro. (Maino’i Rape, 2009)

A organização social indígena Guarani na Aldeia de Sapukai – Angra dos Reis 

Foto: Cacique Domingos é o penúltimo à direita. No centro o xamoi (ancião) João da Silva Wera, liderança do povo Guarani que faleceu em 2016. Acervo do CTI

A aldeia Sapukai fica localizada na Região de Bracuí. A comunidade vive em uma área montanhosa, cercada por mata Atlântica, onde é possível avistar o mar. Os lugares onde as famílias formam seus assentamentos são conhecidos como Tekoa, que significa espaço, lugar que tem as condições de existência e realização de seu modo de vida ancestral, seu Nhanderekó ou Tekó – é o lugar onde se dão as condições de ser Guarani. Podemos qualificar o tekoa como o lugar que reúne condições físicas (geográficas e ecológicas) e estratégicas, que permitem compor, a partir de uma família extensa, com chefia espiritual própria, um espaço político-social fundamentado na religião e na agricultura de subsistência (Ladeira, 1992, 97).

Segundo o seu Nhanderekó, um bom lugar para viver é onde há uma boa terra para plantar, pois são tradicionalmente agricultores, mantendo roças familiares e plantando, em sistemas de rodízio, os principais alimentos de sua dieta, como o milho (awati), mandioca (mandio), batata-doce (djety’i), amendoim (manduvi) e feijão (kumandá), uma média de três hectares ao ano.

Tem que ter um lugar para pescar, caçar e colher as frutinhas do mato. As casas de moradia (o’y) costumam ser próximas às árvores frutíferas, para complemento alimentar, tais como o abacateiro e a bananeira. A mata é necessária para os indígenas colherem o material necessário para a construção de casas, cestos, arcos, ornamentos e objetos rituais religiosos.

 As aldeias Guarani podem ser formadas a partir de uma família extensa, desde que tenham uma chefia espiritual e política própria. Na aldeia Sapukai, vivem, aproximadamente, 320 indígenas, mais da metade é composta por crianças menores de 14 anos.

Segundo os padrões tradicionais Guarani, a família extensa é composta, em princípio, pelo casal, filhas, genros e netos, constituindo-se numa unidade de produção e consumo.

 

A religião indígena Guarani na Aldeia de Sapukai – Angra dos Reis 

Foto: Coral Guarani na aldeia Sapukai, acervo do CTI, disponível na Internet.

A Casa de Reza (Opy) ocupa lugar de destaque, convergindo para ela todas as atividades significativas da aldeia. No seu interior, cuja vedação é completa, para impedir a entrada de espíritos indesejáveis, os Guarani ouvem as belas palavras (porahei) proferidas pelos xamãs e realizam os rituais funerários, de cura e do batismo do milho. É no pátio, em frente à Opy, que se realizam as reuniões de deliberação da comunidade e o xondarê, dança lúdica Guarani, quando todos brincam ao som do violão e da rabeca.

São os xamãs, conhecidos também por rezadores, que, ouvindo as vozes e orientações dos deuses, os conduziram a esses espaços, para que pudessem construir suas aldeias, o tekoa.

A aldeia costuma receber com frequência visitas de algumas igrejas de diversas denominações e de missionários, que se aproximam com o objetivo de conhecer a cultura indígena e evangelizar, compartilhando momentos de louvor, brincadeiras e evangelismo.

 

Há uma crítica à historiografia em geral e, em especial, à brasileira, que tem reservado ao índio um papel de “figurante mudo ou de vítima passiva” (Monteiro, 1992:476) dos processos coloniais. Há, na historiografia relativa à formação do Brasil meridional, no período colonial, duas tendências antagônicas: uma, das “reduções jesuíticas”; outra, dos “bandeirantes ou bandeirantismo paulista”. Numa, os índios Guarani são dominados, amansados, catequizados; e na outra são dizimados ou escravizados. Recentemente, tem-se buscado tematizar esse debate e incluir estudos que levem a apontar as estratégias indígenas em cada contexto histórico do período colonial e em cada forma de inserção nas estruturas coloniais, que espaços de preservação e de recriação do “modo antigo de viver” foram construídos. Foi a partir de inúmeras dessas estratégias que o povo Guarani completou mais de 500 anos de contato. (NOBRE, D. B., 2006, p. 3)

 

A escolarização indígena Guarani na aldeia de Sapukai – Angra dos Reis

Ao conhecermos o Projeto Político Pedagógicoi da Escola Indígena Estadual Karai Kuery Renda, localizada na aldeia de Sapukai, em Angra dos Reis, podemos identificar que ele possui um referencial teórico pautado pela Educação Popular, compreendendo o conceito de currículo como “conjunto de práticas sócio-culturais que permeiam a existência da escola e nas quais ela se insere” (Projeto Político Pedagógico do Colégio Indígena Guarani Karaí Kuery Renda, 2002, p. 3)

Através da fala de um dos indígenas Guarani da aldeia de Sapukai, que encontramos no Projeto Político Pedagógico (PPP) desta escola¹, compreendemos como eles enxergam a importância da escola, para estabelecer uma relação social não somente com sua comunidade, mas também fora dela, a fim de adquirir mais independência para o seu povo. 

… agora, nós precisamos de falar português, todo mundo deve falar e precisa falar, para entender mais o que tá acontecendo no mundo e na comunidade das outras comunidades… …Porque hoje é muito difícil da gente viver sem estudar… …Sempre vivendo dependente, aí não dá… …a gente quando eu era criança tinha pouco contato com o branco… …Mas hoje já é diferente. Nós temos que saber direitinho como nós temos que trabalhar aqui na comunidade e sair pra fora pra trabalhar também pra nós conseguir viver bem aqui na comunidade. (Projeto Político Pedagógico do Colégio Indígena Guarani Karaí Kuery Renda, 2002, p. 14)

 

Percebemos, assim, que a interação dos indígenas com a cidade é necessária e eles a entendem como parte também da sua identidade cultural atual, e, apesar de respeitar e preservar seus princípios cosmológicos, se reinventam descobrindo novas maneiras de sobrevivência. Para isso, eles enxergam na escola uma possibilidade de se aproximar do “conhecimento do livro”, mesmo que já possuam o “conhecimento dos mais velhos”, o “conhecimento que vem da troca e da organização”. 

Dessa forma, as aulas que se iniciaram através de encontros de estudos, debaixo do pé de maracujá da aldeia, ministradas por Algemiro da Silva Karai Mirim², ganharam força. E por meio de muita luta e reivindicação, os Guarani conquistaram uma escola reconhecida pelo MEC, além de conseguirem duas salas de extensão nas demais aldeias do Rio de Janeiro: a Sala de Extensão Guarani Tava Mirim, localizada em Paraty – Mirim e Rio Pequeno, Paraty e a Sala de Extensão Guarani Karai Oka, localizada em Araponga, Paraty. Ambas as salas de extensão utilizam também o Projeto Político Pedagógico da Escola Estadual de Sapukai, Angra dos Reis.

A fim de respeitar e valorizar a cultura do povo Guarani, os objetivos propostos no PPP da escola permeiam-se através dos costumes e modo de vida deles. Portanto, a marca da oralidade é muito presente e importante, quando pensamos na educação Guarani, assim como a relação de respeito aos mais velhos e a sabedoria que eles podem dividir com os mais novos dentro da comunidade. Além da participação ativa de todos da aldeia, pensando em uma perspectiva de vida comunitária. 

Sabemos que o bem maior da preservação da cultura indígena Guarani passa pela valorização da sua língua, e por isso, os alunos da  Escola Indígena Estadual Karai Kuery Renda são alfabetizados primeiro na Língua Guarani, quando estão no 2° ano (8 e 9 anos) e somente no 3° ano (10 a 11 anos) é que são alfabetizados na Língua Portuguesa, consolidando, assim, uma educação bilíngue.

A construção coletiva do PPP aconteceu ao longo de seis anos, um trabalho pedagógico, envolvendo reflexões, cursos de formação continuada, encontros, oficinas etc. Na escola há alguns professores indígenas. Há também duas merendeiras e um zelador indígenas.

Azevedo (2010) traz algumas indagações no que se refere às escolas indígenas, seus Projetos Políticos Pedagógicos e as leis implementadas. Como é possível construir uma escola autônoma, bilíngue e diferente das demais? Para que a escola indígena seja autônoma é primordial que os indígenas sejam gestores de suas escolas, no entanto, as leis criadas e implementadas nas escolas indígenas não estão garantindo esta autonomia. 

O Decreto nº 33.033, de 22 de abril de 2003, criou a categoria de Escola Indígena no âmbito de Educação Básica, no Sistema Estadual de Ensino do Estado do Rio de Janeiro, e, com base neste decreto, a Secretaria de Estado de Educação, através do Conselho Estadual de Educação, aprovou a Deliberação nº 286, de 09 de setembro de 2003, que estabeleceu normas para a autorização, estrutura e funcionamento das Escolas Indígenas.

 

Quando lemos a lei criteriosamente, podemos perceber que a Secretaria de Estado de Educação usa de mecanismos reguladores que, a todo o momento, ditam os caminhos a serem seguidos e, algumas vezes, ignoram o que os indígenas realmente necessitam em suas escolas, tanto administrativamente quanto pedagogicamente. No primeiro capítulo da referida deliberação, que trata da criação da categoria das Escola Indígena, no Artigo 7º, encontramos que a SEE-RJ: regulamentará administrativamente as escolas indígenas, integrando-as como unidades próprias, autônomas e específicas no seu sistema educacional e as proverá de recursos humanos, materiais e financeiros. (AZEVEDO, 2010, p. 27)

 

Segundo o artigo 11, do capítulo II, da mesma deliberação, uma Escola Indígena deve ser dirigida e administrada exclusivamente por um professor indígena escolhido pela comunidade. O diretor pedagógico da Escola Indígena Estadual Karai Kuery Renda é realmente um educador indígena, porém quem toma as principais decisões é uma diretora, que, por mais amiga que seja da escola e de seus respectivos professores, não é indígena.

De acordo ainda com Azevedo (2010), a proposta pedagógica de uma escola indígena deve ser diferente. Deve ser considerado a diversidade de etnias, e suas respectivas comunidades. De acordo com a lei, a proposta pedagógica deve respeitar as propostas e os conteúdos curriculares de cada etnia, no entanto, os conteúdos curriculares são padronizados pelas DCNs e RCNEI, dessa forma, não é possível que haja um conteúdo específico para cada comunidade.

A construção de uma proposta curricular e do Projeto Político Pedagógico foram os primeiros passos de reconhecimento do Estado do RJ e da SEE-RJ para proporcionar a criação de uma escola que respeitasse as especificidades do povo Guarani. Sabemos que, na prática, ainda há muita dificuldade em vermos as leis estaduais dialogando com as especificidades da educação escolar indígena. Entretanto, apesar desses obstáculos, muitas conquistas vêm sendo alcançadas. Como, por exemplo, a conferência que ocorreu na aldeia Sapukai, na qual também participaram as lideranças indígenas das demais aldeias do Rio de Janeiro.

Nesta conferência foi discutido o motivo pelo qual os indígenas Guarani querem escolas, o que já foi conquistado e o que fazer para ir adiante na educação escolar que eles desejam. Esta conferência foi de suma importância para que a aldeia refletisse sobre o que esperar da educação escolar, bem como fortaleceu o movimento indígena, a fim de lutar pela implementação de políticas públicas eficientes, para que eles possam ter uma educação de qualidade.

Segundo o Projeto Político Pedagógico aqui citado anteriormente, o dever da escola é criar um currículo a partir da cosmovisão Guarani, refletindo sobre que indivíduo será formado. Logo, a educação Guarani tem que ser pautada sobre o Nhanderekó. Lembrando que os Guarani prezam em suas tradições, primeiramente, pela valorização e respeito ao conhecimento de seus ancestrais e aos mais velhos da comunidade e isso deve ser levado em consideração ao sistematizar o conceito de escola que é formado por eles. 

Através do apoio da Universidade Federal Fluminense, da Secretaria Estadual de educação, do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina e do Coletivo de Educação Diferenciada foi conquistado na aldeia de Sapukai, Angra dos Reis, mais um avanço riquíssimo para a contribuição da autonomia dos indígenas Guarani em suas escolas, a construção do Magistério Indígena. 

Esse marco, registrado no dia 14 de julho de 2018, contribui para que haja, no Colégio Indígena Estadual Guarani Karai Kuery Renda, uma educação diferenciada, que respeite as especificidades pensadas e defendidas pelos próprios Guarani, para a construção de uma educação que valorize suas tradições e o modo de ser Nhanderekó, permitindo que os Guarani consigam se profissionalizar no magistério e participem ativamente sobre as decisões a serem tomadas para a educação do seu povo, fortalecendo as resistências indígenas atuais.

A saúde na gestação das mulheres indígenas e na infância das crianças indígenas na Aldeia de Sapukai – Angra dos Reis: uma tradição que deve ser respeitada

 

No que tange a saúde na Aldeia de Sapukai, cabe destacar um trabalho realizado por Alessandro Karaí Mirim. Através de muitas pesquisas e entrevistas (realizadas com alguns membros da Aldeia Sapukai), ele mostra os cuidados que o pai e a mãe devem ter antes e depois do parto. Para os Guarani, ter um filho com saúde não é apenas preparar e cuidar do corpo, é essencial ficar atento a alguns comportamentos. Nhanderu envia as crianças sem defeitos, e quando uma delas vem com uma parte do corpo faltando, pode ser porque um dos pais não observou alguns cuidados antes, durante ou depois da gestação.

Cabe citar alguns cuidados que são passados de geração em geração e que devem ser respeitados, a fim de que a mulher tenha um parto tranquilo e a criança venha sem defeito. Quando a gestante faz um artesanato, não se pode deixar de finalizar, principalmente o de bichinhos de madeira, que são elaborados em formato de animais, uma vez que o bebê pode nascer com uma parte do corpo faltando, semelhante a que faltou no bichinho. 

As mulheres também não podem ingerir o pássaro inambu antes da gestação, pois esse pássaro só protege os ovos até chocar, se não respeitar essa regra a mãe pode abandonar o filho. Na hora de se alimentar, a faca não deve ser levada à boca, pois a criança pode nascer muda. No início da gravidez, não se pode usar colar, pois a criança pode nascer com o cordão umbilical no pescoço. Ademais, quando os bebês estão demorando a nascer, as parteiras costumam usar óleo de gambá misturados a erva pipi. Basta passar em torno da barriga e nas costas, que logo a criança nasce.

Alguns cuidados também devem ser respeitados depois que a criança nasce. Se for menino, o espírito dele está com o pai, e para que o espírito do bebê não se perca, quando o pai sai da aldeia, deve ser feito um arco e flecha depois do nascimento da criança. Além disso, o pai também deve ficar um ano sem jogar futebol, pois seria como chutar a barriga da criança, que pode vir a ficar muito doente. De fato, seguir as regras é primordial para se ter filhos saudáveis. Além disso, falar sobre esses cuidados com a família ao longo da gestação, é essencial para preservar a cultura e os saberes dos mais velhos.  

 

Entrevista com a professora Jaxuka, Aldeia Sapukai

Para complementar informações sobre a aldeia de Sapukai, realizamos entrevista com a professora Jaxuka, em abril de 2022, através da plataforma digital Google meet, abordando assuntos relacionados à religião, saúde e educação. Transcrevemos aqui trechos desta conversa:

E: Todos os indígenas de Sapukai frequentam a casa de reza, inclusive os que são convertidos e participam dos rituais?

Jaxuka: Hoje em dia está difícil porque os jovens, a maioria tem tecnologia, tipo celular, então por isso está difícil frequentar casa de reza. Isso dificulta um pouco e são os mais velhos que mais frequentam (a casa de reza). Às vezes, os jovens entram, mas não todos os dias. Eu acho que a tecnologia, o uso do celular, está atrapalhando os jovens.

E: Quantas religiões há na aldeia?

Jaxuka: Além da nossa espiritualidade Guarani, tem muitos evangélicos e acho que tem duas famílias que são católicas.

E: Como acontece o processo de escolarização na aldeia? Como são as aulas, professores, salas de aula?

Jaxulka: Aqui na aldeia tem cinco professores guarani, do 1º segmento e 2º segmento. Eu dou aula para crianças de cinco anos do terceiro ano, sou professora, dou aula em guarani. De vez em quando eu explico, as crianças entendem, às vezes não, mas está difícil também na educação.

E: Na aldeia tem professor que não é indígena?

Jaxuka: Tem, mas está dando aula para os mais jovens de 15 anos, 16 anos, acho que tem também sete ou cinco professores juruá e professor indígena também acompanha os jovens.

E: E a direção da escola é composta por quem?

Jaxuka: A diretora não é indígena, Ivone é o nome dela.

E: Você pode falar um pouco sobre Nhadereko?

Jaxuka: Para mim Nhadereko é… Tekoa é aldeia, tekoa é vida, a gente habita aqui, temos nhadereko é nossa língua, a casa de reza. Nhadereko é tipo a gente vive, a gente não deixa de ser guarani, nós vivemos nossa língua, vivemos como os guarani, vivemos na casa, vivemos na aldeia. Nahdereko para nós é viver na aldeia tranquilo. Ficar na aldeia, entramos, saímos, mas não deixamos de ser Ore Reko. Ore Reko Porã para nós, para é nós é Ore eu tenho a minha vida, tipo meu jeito de ser guarani, minha língua, minha cultura.

E: Como foi o enfrentamento da pandemia em 2019 na aldeia Sapukai? Como foi a questão de ficar isolado, de não poder sair da aldeia e toda questão de higiene, ter que usar máscara?

Jaxuka: Então, na primeira pandemia ficou tão difícil, porque a gente é acostumado a sair, ficar todo mundo junto com a família, então a gente vivendo a orientação da saúde, de usar máscara, álcool em gel, então foi difícil, imagina para as crianças e para os mais velhos. Ficamos assustados, não entrava mais na casa de reza, só ficava em casa. Depois que a gente perdeu o nosso cacique aqui, nós ficamos triste, foi difícil, mas a gente está vivendo.

E: A aldeia Sapukai tem posto de saúde?

Jaxuka: Tem, todos os dias tem equipe trabalhando, ajudando as famílias, então isso é importante para a gente.

E: Todos na aldeia Sapukai conseguiram se vacinar? Tiveram alguma dificuldade quanto a isso?

Jaxuka: A gente conseguiu sim, foi bem tranquilo, porque a equipe de saúde foi na casa de todo mundo, primeira, segunda e terceira dose. Todo mundo foi vacinado.

E: Na aldeia, vocês têm algum alimento de cultivo próprio? Se é para o consumo de vocês ou se vocês comercializam?

Jaxuka: Tem umas famílias que plantam para o cultivo da família mesmo, tem mandioca, batata doce, banana. São para consumo próprio.

E: A aldeia recebeu alguma ajuda de cesta básica durante a pandemia?

Jaxuka: Sim, a gente recebeu cesta básica e para as famílias. Os guaranis das outras aldeias também ajudam e isso é muito importante..

 

¹ O PPP foi construído ao longo de dez anos, pela equipe de professores indígenas, não-indígenas e comunidade Guarani Mbya com o apoio da equipe do projeto Escolas do Território, coordenado pelo professor Domingos Nobre (IEAR-UFF). Para saber mais: https://educadiversidade.wixsite.com/educadiversidade

² Primeiro professor indígena Guarani no estado do Rio de Janeiro.

Referências Bibliográficas

AZEVEDO, Michelle Puente. Professores Indígenas Guarani Mybá de Angra dos Reis – Rj: Práticas Pedagógicas e Projetos de Futuro. 2010. Monografia (Licenciatura Plena em Pedagogia). Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, São Gonçalo, 2010.

BERGO, Renata S.; PRADO, Renata L. C. Informações Bibliográficas “Entre a escola e a casa de reza: infância, cultura e linguagem na formação de professores indígenas guarani”, de Domingos Nobre. Desidades, 2018. http://desidades.ufrj.br/bibliographic_info/entre-a-escola-e-a-casa-de-reza-infancia-cultura-e-linguagem-na-formacao-de-professores-indigenas-guarani-de-domingos-nobre/. Acesso em: 09/02/2022.

CANCIAN, Vanessa. Magistério indígena é inaugurado na aldeia Sapukai em Angra dos Reis. Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina. 20 de jul. de 2018. Disponível em: < https://www.otss.org.br/post/magist%C3%A9rio-ind%C3%ADgena-%C3%A9-inaugurado-na-aldeia-sapukai-em-angra-dos-reis>. Acesso em: 10 de fev. de 2022.

Cultura Indígena: Os Guarani no Rio de Janeiro. Área de Proteção Ambiental de Cairuçu – Atrativos Culturais. Disponível em: https://www.icmbio.gov.br/cairucu/visitacao/atrativos-culturais.html?showall=&start=2. Acesso em: 09/02/2022

Guarani Mbya. Povos Indígenas no Brasil, 2008. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Guarani_Mbya. Acesso em: 09/02/2022.

Maino’i’ rape, 2009.

MARTINS, Norielem de Jesus. Educação Escolar Indígena Guarani: tensões e desafios na conquista de direitos. Dissertação de mestrado. UFRRJ. Rio de Janeiro. 2016. 

Mirim, Alessandro Karaí. Kyringue Rexain Rã – Para a Saúde das Crianças Guarani Mbyá. 2019. Percurso académico (Licenciatura em Ciências da Vida e da Natureza). Faculdade de Educação – Formação Intercultural Para Educadores Indígenas, UFMG, Belo Horizonte, 2019.

NOBRE, Domingos Barros. Escola Indígena Guarani Mbya: Resistência e subordinação. 2006. Reuniões Científicas, GT02 – História da Educação. 29ª Reunião Anual da Anped, 2006. 

Os quatro cantos sagrados [recurso eletrônico] : cartilha de aprendizagem de saberes tradicionais / organizadores Daniel Timóteo Martins, Hyral Moreira. – Dados eletrônicos. – Florianópolis: UFSC, 2018. 49 p.: il.

PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO. Colégio Indígena Estadual Guarani Karai Kuery Renda, Angra dos Reis, 2002.

Referência da imagem 1: Instagram: aldeiasapukaii Disponível em: https://www.instagram.com/aldeiasapukaii/. Acesso em: 19 abr.2022. Instagram: _pa.oli Disponível em: https://www.instagram.com/p/CMKTMn7HjNF/. Acesso em: 19 abr.2022. Instagram: biathomaaz Disponível em: https://www.instagram.com/p/B4amdktF1XQ/. Acesso em: 19 abr.2022. Instagram: festivaldemarcacaojaremix Disponível em: https://www.instagram.com/p/CEasp99JTtR/. Acesso em: 19 abr.2022.

 

i O Projeto Político Pedagógico desta escola foi desenvolvido em uma parceria entre comunidade Guarani e o Programa Escolas do Território, coordenado pelo Prof. Domingos Nobre (IEAR-UFF).

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