Texto: Aline Gouveia – Site Correio Braziliense
A mais de 3 mil quilômetros de distância da capital federal, 15 indígenas de cidades do Acre foram aprovados no Vestibular Indígena da Universidade de Brasília (UnB) de 2025. Esses estudantes são de quatro povos: Huni Kuin, Nawa, Nukini e Puyanawa. O antropólogo e jornalista Tarisson Nawa explicou que para a cidade acriana de Cruzeiro do Sul receber um polo de aplicação da prova foi necessário dialogar com diversas organizações.
“Essa cidade é referência porque a região do Vale do Juruá tem a maior presença de terras indígenas, 12 dos 14 povos do Acre estão lá. É uma região com muita diversidade de povos. A aprovação desses indígenas representa uma retomada do ensino superior para os povos indígenas”, frisa Nawa, que foi um dos responsáveis pela mobilização da aplicação do vestibular da UnB no Acre.
Determinação para seguir novos caminhos
Niara Nukini, 31 anos, foi aprovada para ciências sociais, com habilitação em antropologia e sociologia. Segundo ela, a Universidade de Brasília foi a única que ofereceu um vestibular indígena específico e diferenciado, com processo seletivo pensado para atender às realidades dos povos indígenas. Além disso, a realização da prova em um local próximo ao território onde ela mora facilitou a participação dela.
Niara relata que fazer o vestibular foi uma experiência desafiadora. Além da pressão natural do processo seletivo, havia também o peso simbólico dessa conquista. “Não só para mim, mas para o meu povo. Saber que essa formação pode me ajudar a contribuir ainda mais com minha comunidade e fortalecer nossas lutas me deu ainda mais motivação. Foi um momento de muitas emoções, que reforçou minha determinação em seguir nesse caminho”, desabafa.
Niara é de Mâncio Lima, a cidade mais ao extremo do Brasil. “Essa distância torna o deslocamento um grande desafio para nós, indígenas. Para chegar até Brasília, o trajeto de ônibus levaria cerca de cinco dias, mas já me organizei e reservei recursos para comprar uma passagem de avião, que reduz esse tempo para aproximadamente quatro horas, evitando um desgaste ainda maior”, contou a indígena ao Correio.
Em Brasília, Niara vai morar com uma prima dela, que também é do povo Nukini e já estuda na UnB. “Essa rede de apoio é fundamental, pois, além de facilitar minha adaptação, também representa um acolhimento importante nesse novo ciclo”, diz.
A expectativa de Nukini é conseguir concluir o curso. “Um dos maiores desafios para os indígenas não é apenas o acesso à universidade, mas também a permanência, devido a diversas dificuldades, como a adaptação a um ambiente acadêmico muitas vezes distante da nossa realidade, questões financeiras e a saudade da nossa família, principalmente dos meus filhos que vou deixar no território com minha mãe”, declara Niara.
Como indígena Nukini, ela afirma que tem orgulho de carregar a identidade no corpo e a força dos ancestrais no espírito. Desde criança, ela cresceu ouvindo histórias, aprendendo com a floresta, respeitando os ciclos da natureza e os saberes do povo do qual ela faz parte. Niara lembra que a infância dela foi entre os rios e as matas, brincando livremente, ajudando nas plantações e participando dos rituais.
“Por muito tempo, eu não entendia o quão importante era ser indígena. Não compreendia o valor da minha história, da minha cultura e da resistência dos meus ancestrais. Foi só em 2021, quando entrei no movimento indígena, que comecei a enxergar tudo isso com mais clareza. Desde então, nunca mais parei. A cada passo, fui reconhecendo a valorização dos povos indígenas, entendendo que nossa luta é coletiva e essencial para garantir nossos direitos e manter vivas nossas tradições”, ressalta Niara.
“Mas ser indígena também é enfrentar desafios. O preconceito, a luta pela demarcação das terras, a dificuldade de acesso a direitos básicos como saúde e educação são barreiras constantes. Ainda assim, seguimos resistindo, fortalecendo nossa cultura, ensinando nossas crianças e mostrando ao mundo que existimos e temos voz. A luta é diária, mas nossa identidade é inquebrantável”, acrescenta a indígena.
Sonho de juventude
Outro aprovado foi Yures Puyanawa, 18 anos. Ele recebeu aprovação para o curso de ciências biológicas. O jovem afirmou que a experiência com o vestibular da UnB foi “única”. Da aldeia onde Yures mora até o local de aplicação da prova foram cerca de duas horas de trajeto. No entanto, a distância não foi obstáculo para o estudante.
“Fiquei muito feliz com minha aprovação. Era um sonho passar em uma universidade. Minha expectativa para a UnB é seguir essa nova jornada, conhecer novas pessoas e lugares e conviver com outros parentes indígenas que estudam lá”, conta Yures. O jovem chega a Brasília no dia 16 de março, junto com outros seis indígenas Puyanawa que também foram aprovados.
“Isso é bastante importante para mim, para a minha família e para a minha comunidade. Eles estão me apoiando e incentivando nessa jornada. Pude concluir o ensino médio e já entrar na faculdade, poucos jovens têm essa oportunidade. E ser um jovem que está aprendendo a cultura do meu povo me deixa muito fortalecido”, celebra Yures.
Sobre o vestibular indígena
Desde 2006, a UnB é pioneira entre universidades federais de todo o Brasil ao ofertar à indígenas acesso a cursos de graduação por meio de vestibular específico. O Vestibular Indígena da UnB de 2025 foi realizado em cidades de sete capitais brasileiras (além de Brasília): Benjamin Constant, no Amazonas; Santarém, no Pará; Cabrobró, em Pernambuco; Campo Novo do Parecis, em Mato Grosso; Cruzeiro do Sul, no Acre; e Porto Real do Colégio, em Alagoas.
A seleção, exclusiva para indígenas, surgiu de um Acordo de Cooperação Técnica entre a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Universidade de Brasília, com o objetivo de possibilitar o acesso dos povos indígenas à educação superior e oferecer apoio para a permanência dos estudantes.
A diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai, Lucia Alberta, ressaltou a importância da parceria para induzir a criação de políticas públicas para a promoção e proteção dos direitos dos povos originários.
“Esse acordo mostra o papel fundamental da Funai em garantir os direitos indígenas e assegurar que esses povos tenham acesso às universidades. Lembrando que essa parceria que a Funai tem com a UnB acabou incentivando o Ministério da Educação a criar oficialmente o programa Bolsa Permanência. Então, esses pequenos passos acabam influenciando políticas importantes que contribuem ainda mais para a garantia dos direitos dos povos indígenas”, frisa Lucia.
Já o coordenador de Processos Educativos da Funai, André Ramos, destaca a importância de acordos como esse para inserir os povos indígenas em espaços estratégicos para o aprimoramento da política indigenista.
“A parceria da Funai com a UnB e outras instituições de ensino possibilita a atuação de profissionais indígenas dentro de suas comunidades. Há indígenas que se formaram em medicina e enfermagem na UnB que trabalham dentro da política de saúde indígena em sua região, assim também nas áreas de educação, direitos sociais, ciências agrárias, e outras. Isso mostra para a sociedade brasileira o potencial dos povos indígenas, e contribui no combate ao preconceito e ao racismo contra essa parcela da população, além de ser um mecanismo importante na busca por um país mais justo e igualitário”, afirma André.
As provas do vestibular indígena foram aplicadas em dezembro de 2024. Os aprovados começam a estudar na UnB no dia 24 de março.