Texto de Emily Santos (site G1)
Márcia Mura, doutora em História Social pela USP, explica que o termo ‘índio’ carrega ideias ultrapassadas e genéricas e não abrange a diversidade que existe entre os povos originários.
Data que marca a luta dos povos originários pela sobrevivência desde a colonização do Brasil até os genocídios modernos, o “Dia do Índio”, celebrado nesta terça-feira (19), deveria se chamar “Dia dos Povos Indígenas”, de acordo com a professora e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Márcia Mura. Segundo ela, a mudança é necessária para refletir as ideias e lutas das diversas sociedades indígenas.
Imagem:Site G1/ Márcia Moura (Acervo Pessoal)
Índio é um termo genérico, que não considera as especificidades que existem entre os povos indígenas, como especificidades linguísticas, culturais e mesmo a especificidade de tempo de contato com a sociedade não indígena, explica.
Em contrapartida, “indígena” é uma palavra que significa “natural” do lugar em que vive”. O termo exprime que cada povo, de onde quer que seja, é único.
“O que o movimento indígena reivindica é que esse termo [índio], que é colonizador, que reproduz um pejorativo que remete ideia eurocêntrica de somos atrasados, de que somos todos iguais, no sentido de que as diferenças linguísticas e culturais são desconsideradas, seja substituído por como nos autodenominamos”, continua.
O escritor indígena, doutor em educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos Daniel Munduruku também acredita que a palavra “índio” “esconde toda a diversidade dos povos indígenas”.
Imagem: Daniel Munduruku (sitr g1)
“A palavra ‘indígena’ diz muito mais a nosso respeito do que a palavra ‘índio’. Indígena quer dizer originário, aquele que está ali antes dos outros”, explicou o autor em entrevista à BBC News Brasil.
Munduruku pertence ao povo indígena de mesmo nome, que está situado em regiões do Pará, Amazonas e Mato Grosso.
A mestra em Linguística Aplicada pela PUC-SP Maria Vitória Berlink defende que o movimento de adoção ao termo “indígena” é significante porque representa a exposição das individualidades dos povos.
“Os colonizadores portugueses e espanhóis, principalmente, usavam a palavra ‘índio’ para qualquer povo originário que encontravam pelo território. É um termo raso, que não considera qualquer traço individual destes povos. O que estes mesmos povos tentam fazer agora é tomar para si o direito de se definirem e de mostrar que são mais do que o termo exprime”, explica.
A mudança pode até ser oficializada em lei se o projeto de lei da deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR), que tramita no Senado, for aprovado. O PL que propõe que o “Dia do Índio” passe a ser chamado de “Dia dos Povos Indígenas” foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados em dezembro de 2021.
Para além da nomenclatura, Márcia Mura explica que o ideal é respeitar a identidade cultural individual de cada povo e tratar as etnias pelo nome.
“Quando dizemos que não somos índios, queremos dizer que somos Mura, Uruéu-Au-Au, Guarasugwe, todos habitantes do território Pindorama, que é como os Tupinambá chamam o que os colonizadores deram o nome de Brasil, mas diferentes”.
O debate sobre como os não indígenas devem se referir aos povos originários acontece entre os próprios povos, e a professora diz que há quem se conforme com o uso do termo cravado pelos espanhóis. “É preciso lembrar que muitos povos sofreram tentativa de apagamento desde a chegada dos colonizadores. Tentaram apagar nossas línguas, nossas culturas, nossas memórias, e deixaram para nós este termo cheio de estereótipos”, lamenta.
“Não há motivo para comemorar”
Apesar da ideia de que o dia 19 de abril é um dia para celebrar os povos indígenas, Márcia Mura defende que não é de comemoração, mas de reinvindicação. “Não temos o que comemorar, porque ainda precisamos reivindicar e pautar nossas lutas. Lutamos todos os dias pelo nosso território, pela nossa cultura e pelo direito de viver como vivemos, quando existe uma sociedade que está nos matando pouco a pouco”.
De acordo com dados do Prodes, sistema oficial do Inpe de monitoramento da Amazônia, o desmatamento atingiu 115 terras indígenas em 2019. Ao todo, foram destruídos 42.679 hectares, 80% a mais do que o registrado em 2018.
“Estamos perdendo nossas terras para estradas, hidrelétricas, termelétricas, pastos e para a mineração ilegal. Não podemos comemorar enquanto tentamos sobreviver”, diz a professora.
Mas ela reforça que a floresta não é o único lugar de onde os indígenas resistem.
“Estamos em diferentes contextos. No interior da floresta, nas margens dos rios e dos lagos, mas também na cidade, em contexto urbano, além do território demarcado oficialmente como território indígena”.
Márcia Mura enfatiza o direito de demarcação dos territórios dos povos indígenas. Lembra também que todo território nacional é indígena e que o cuidado com a terra é de responsabilidade de todos.
“Os povos cuidam da floresta e dos rios, mas os não indígenas também precisam cuidar. Eles também vão ser afetados se faltar chuva, se os biomas forem destruídos. Todos os biomas são importantes e todos são ligados aos outros. Tudo está interligado e nós estamos ligados a este ambiente”, conclui.